Aspectos tributários e contábeis do mútuo e do adiantamento para futuro aumento de capital
Por Monya Pinheiro
No momento da constituição da sociedade empresária, os sócios devem aportar recursos para o início de suas atividades, formando-se o capital social da organização. Além da contribuição (em dinheiro, bens ou direitos) para integralização das quotas (LTDA) ou ações (S/A), os sócios ou acionistas podem aportar recursos financeiros na sociedade a título de adiantamento para o futuro capital (Afac) ou mútuo.
Trata-se o mútuo de um empréstimo de coisas fungíveis, sendo um contrato disciplinado nos artigos 586 a 592 do Código Civil. O Afac caracteriza-se como um aporte financeiro (temporário ou definitivo) feito pelos sócios, com a intenção de posterior conversão do valor em capital social, que poderá ser convertido ou devolvido ao sócio.
Embora não tenha previsão expressa em lei, o Afac é prática societária comum, encontrando guarida na Lei 6.404/1976 (Lei das S.A), em normas contábeis do Conselho Federal de Contabilidade, instruções normativas da Receita Federal e jurisprudência do Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais).
Tanto o mútuo quanto o Afac são formas legítimas de aporte de recursos financeiros na sociedade empresária pelo sócio/acionista, embora se tratem de operações com finalidades e tratamentos tributário e contábil diferentes.
Tratamentos contábil e tributário da Afac e do mútuo
Mútuo
Tratamento contábil
a) Para a sociedade
O mútuo deve ser registrado como um passivo da mutuária, circulante ou não circulante, a depender do prazo ajustado para pagamento (se inferior ao término do exercício social seguinte, no passivo circulante; caso superior, no não circulante), conforme artigo 180 da Lei 6.404/1976. Havendo estipulação de pagamento de juros ao sócio que realizou o empréstimo, eles devem ser classificados como despesa financeira da sociedade mutuária, observando-se o regime de competência.
b) Para o sócio
O mútuo realizado pelo sócio (pessoa jurídica) deve ser registrado como um ativo, em conta do realizável a longo prazo, independentemente do prazo ajustado para a devolução do empréstimo (artigo 179 da Lei 6.404/1976). Caso haja estipulação de pagamento de juros ao sócio, eles devem ser reconhecidos como receita financeira do mutuante pessoa jurídica, observando-se o regime de competência.
Tratamento tributário
a) Para a sociedade
Sobre a operação de mútuo incide o IOF (Imposto sobre Operações de Crédito, Câmbio e Seguros ou Relativas a Títulos e Valores Mobiliários), cujo fato gerador é considerado ocorrido na data de concessão do crédito.
A sociedade que recebe o mútuo é a contribuinte do imposto (Lei 8.894/1994, artigo 3º); se o sócio mutuante for pessoa jurídica, será dele a responsabilidade pela cobrança e recolhimento do IOF, nos termos do artigo 13, §2º, da Lei 9.779/1999. Os juros pagos ao sócio em razão do mútuo são dedutíveis da apuração do lucro real (IRPJ e CSLL) da sociedade (Lei 4.506/1964, artigo 47), observando-se as regras e limites estabelecidos pela legislação.
Caso o empréstimo tenha sido realizado por sócio pessoa física, deverá a sociedade mutuária reter e recolher o imposto de renda (IRRF) sobre os juros creditados ao sócio.
b) Para o sócio
Sobre a operação de mútuo incide o IOF, cujo fato gerador é considerado ocorrido na data de concessão do crédito. Embora seja a sociedade mutuária o sujeito passivo da obrigação tributária, se o sócio mutuante for pessoa jurídica, será dele a responsabilidade pela cobrança e recolhimento do IOF.
Os juros recebidos pelo sócio em virtude da operação de mútuo, tratando-se de sócio pessoa jurídica, são tributados como receita financeira pelo IRPJ e CSLL. Caso o sócio pessoa jurídica esteja sujeito ao regime de apuração não-cumulativa de PIS e Cofins, também haverá incidência das aludidas contribuições sobre os juros.
Tratando-se o sócio mutuante de pessoa física, eventuais juros recebidos em virtude do empréstimo feito à sociedade sujeitam-se ao imposto de renda, que é retido e recolhido pela sociedade mutuária.
Afac
Tratamento contábil
a) Para a sociedade
Nos termos do Comunicado Técnico CTG 2000, do Conselho Federal de Contabilidade, o Afac realizado sem que haja a possibilidade de sua devolução ao sócio (“Afac irretratável”) deve ser registrado no patrimônio líquido da sociedade, após a conta de capital social, até a sua efetiva conversão em aumento de capital social.
Caso haja possibilidade de devolução do adiantamento ao sócio (“Afac retratável”), deve ser registrado no passivo (circulante ou não circulante, a depender dos prazos ajustados) da sociedade como uma obrigação financeira (dívida).
b) Para o sócio
O sócio pessoa jurídica que realiza um adiantamento para futuro aumento de capital deve registrá-lo no ativo circulante como um direito a receber. Uma vez convertido o Afac em capital social da sociedade que recebeu o aporte, o direito — agora participação societária — deverá ser reclassificado para a conta investimentos (ou, a depender da atividade/objeto social do sócio pessoa jurídica, ser mantida na conta ativo circulante).
Tratamento tributário
a) Para a sociedade
Não se tratando de mútuo, a realização do AFAC não atrai a incidência do IOF, tampouco se configura como acréscimo patrimonial da sociedade, de modo que não há incidência de tributos sobre a renda.
A conversão do Afac em capital social também não atrai a incidência de tributos, uma vez que o que ocorre é a movimentação entre contas (do patrimônio líquido para o capital social). A devolução do Afac ao sócio também não é fato gerador de tributos.
b) Para o sócio
Não se tratando de mútuo, a realização do Afac não atrai a incidência do IOF. A devolução do Afac ao sócio não é considerada acréscimo patrimonial ou distribuição de lucros; é relevante, para afastar qualquer questionamento fiscal, a devida formalização justificada da devolução dos valores meramente adiantados pelo sócio.
Afac pode ser convertido em mútuo?
Não há vedação legal e/ou regulamentar, embora as características e finalidades de cada um possam dificultar/desestimular sob a perspectiva contábil e tributária a conversão.
Segundo o Comunicado Técnico CTG 2000, o AFAC realizado sem a possibilidade de sua devolução (“irretratável”) deve ser registrado no Patrimônio Líquido das entidades, após a conta de capital social. No entanto, caso haja qualquer possibilidade de sua devolução ao sócio (“retratável”), o Afac se caracteriza como uma obrigação financeira (dívida) da sociedade e deve ser registrado no passivo (circulante ou não circulante, a depender do prazo ajustado).
O mútuo invariavelmente deve ser registrado no passivo (circulante ou não circulante) como uma dívida da sociedade mutuária.
A peculiaridade da operação de mútuo reside na incidência tributária do IOF, aplicando-se as mesmas normas aplicáveis às operações de financiamento e empréstimos praticadas pelas instituições financeiras.
Mesmo considerando a identidade de classificação contábil entre o Afac retratável e o mútuo, neste há incidência de IOF e naquele não há regra que imponha tal tributação.
A fim de afastar eventual descaracterização do Afac desde a sua origem para considerar o aporte como mútuo, o que implicaria em exigência retroativa de IOF, é mais conveniente e adequado a devolução do Afac ao sócio para, em seguida, formalizar a operação de mútuo.
Mútuo pode ser convertido em Afac?
Também não há vedação legal e/ou regulamentar para a aludida conversão; ajustando-se a finalidade da operação celebrada entre o sócio e a sociedade, as características contábeis e tributárias do mútuo facilitam e/ou incentivam a conversão.
Tratando-se a conversão do mútuo em Afac “irretratável”, deve haver a reclassificação contábil da dívida (mútuo), que passará a ser registrado (como Afac) no patrimônio líquido da sociedade, após a conta de capital social.
Se o mútuo for convertido em Afac “retratável”, isto é, com a possibilidade de devolução ao sócio, permanecerá no passivo (circulante ou não circulante, a depender do prazo ajustado) da sociedade uma obrigação financeira: Afac ao invés de mútuo. Sob a perspectiva contábil, o ajuste será feito na mesma conta.
A consequência tributária, entretanto, é relevante: ante a conversão do mútuo em Afac, não mais haverá a incidência de IOF sobre o empréstimo realizado pelo sócio à sociedade.
Entendimento da Receita e do Carf sobre o Afac
Devem o sócio e a sociedade empresária adotarem procedimentos adequados para que, especialmente, o Afac não seja considerado mútuo para fins tributários, atraindo, destarte, repercussões financeiras indesejadas. Para tanto, é relevante a formalização escrita e adequada (contratos, atas de sócios, registros contábeis) de quaisquer das formas de capitalização da sociedade, que deem lastro adequado ao mútuo ou ao Afac.
A Receita Federal considera dois elementos relevantes para a caracterização do Afac: (1) intenção efetiva de conversão do aporte em capital social; e (2) prazo razoável para a conversão do Afac em capital social. A eventual ausência de um deles pode conduzir à consideração do Afac, pelo Fisco, como uma operação de mútuo.
O entendimento da Receita, exarado no Parecer Normativo CST nº 17/1984, é no sentido de que, uma vez realizado o Afac pelo sócio, o aumento de capital deve ocorrer “por ocasião do primeiro ato formal da sociedade coligada, interligada ou controlada, que ocorra imediatamente após o recebimento dos recursos financeiros, seja Assembleia Geral Extraordinária (AGE), para as sociedades por ações, ou alteração contratual, para as demais sociedades” ou no prazo máximo de 120 dias a partir do encerramento do exercício em que a sociedade tenha recebido o aporte financeiro.
Amparada no aludido parecer, a Receita lavrava autos de infração descaracterizando o Afac realizado pelo sócio quando o aporte superava o prazo de 120 dias sem a efetiva capitalização, ou mesmo quando os recursos adiantados eram devolvidos ao sócio. O Fisco considerava que a operação tinha a natureza jurídica de mútuo, exigindo o IOF com acréscimos de multa e juros.Até o ano de 2019, a posição do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) sobre o tema era desfavorável ao contribuinte. Em 2022, entretanto, a 3ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF) do Carf, em julgamento decidido com a aplicação da regra então vigente de desempate favorável ao contribuinte (artigo 19-E da Lei 10.522/2022), entendeu que, diante da inexistência de lei fixando prazo para a conversão do Afac em capital social da sociedade, não se poderia invocar o Parecer Normativo CST 17/1984 (ato infralegal) para fundamentar o auto de infração, seja porque ele não se refere ao IOF, seja em razão de estar atualmente revogado.
Os acórdãos nº 9303-012.913 e nº 9303-012.909 da Câmara Superior do Carf chancelaram o entendimento de que a demora na capitalização do Afac não caracteriza, de per se, a operação como mútuo passível de incidência de IOF, tampouco que a devolução do aporte ao sócio foi/é relevante para a descaracterização da operação como Afac.
No entanto, ambos os acórdãos são anteriores à Lei 14.689/2023. Com o retorno do voto de qualidade no Carf, historicamente favorável ao Fisco, tudo pode mudar. Aguardemos.