As inconstitucionalidades da lista de serviços do Imposto Sobre Serviços (ISS)
Resumo: Verifica-se que o contribuinte brasileiro vem sendo cada vez mais onerado pelo Estado, de maneira que é tema de sobrelevada importância a análise crítica acerca da constitucionalidade da lista de serviços prevista na LC 116/2003 no que tange ao Imposto sobre serviços (ISS). Para preservar a segurança jurídica contemplada no ordenamento jurídico pátrio devem ser considerados aspectos controversos tais como o conceito de serviço e as hipóteses legais de incidência do referido tributo. Nesse ínterim mais do que um estudo sobre a estrita legalidade é imprescindível a apresentação de um estudo hermenêutico sobre os temas concernentes à incidência do imposto, bem como uma análise jurisprudencial de decisões emblemáticas da Corte Suprema no que diz respeito aos princípios tributários e constitucionais relativos à temática ora apreciada.
Introdução
O objetivo do trabalho a ser apresentado a seguir é tratar com riqueza de detalhes acerca de um tema bastante rico e ao mesmo tempo controverso. Trata-se da discussão acerca das Inconstitucionalidades da lista de serviços do ISS. O ISS ou ISSQN (Imposto Sobre Serviço de Qualquer Natureza) veio substituir o anterior IIP (Imposto Sobre Indústrias e Profissões) com a Reforma Tributária implementada pela Emenda Constitucional n. 18/65, e é em si um tema delicado, pois refere-se a um imposto a ser pago pelos cidadãos sobre os serviços que contratam, serviços estes que para serem tributados devem estar expressamente dispostos em lista específica na LC 116/2003). A grande questão a ser discutida é a existência de inconstitucionalidades nesses serviços, assim como outras questões relevantes como o próprio conceito de serviço, suas especificidades e até mesmo sua aplicação em situações específicas do caso concreto. Além da discussão doutrinária, faz-se mister a exposição e análise minuciosa de julgados dos principais Tribunais de referência em nosso país, visto que, sendo responsáveis pela uniformização das decisões, tem papel relevante nessa discussão.
1. Conceito e disciplina legal
Inicialmente, para a exata compreensão do ISS, é imperativo realizar uma análise sucinta do conceito de “serviço”. “Serviço” é um vocábulo que admite as mais diversas definições, dentre as quais podemos destacar: a ação ou o resultado de servir; o desempenho de alguma tarefa, trabalho ou atividade – como, por exemplo, o serviço doméstico –; e a realização de trabalho remunerado, emprego, ocupação.
Dessa forma podemos definir “serviço” como sendo uma atividade, remunerada ou não, prestada a terceiro ou realizada em decorrência de um vínculo empregatício.
A Constituição Federal de 1988 atribui, em seu art. 156, inciso III, ao Município, a competência para tributar os “serviços de qualquer natureza”, sendo-lhe fixadas apenas duas limitações: a impossibilidade de conflito com a competência estadual e distrital, prevista pelo art. 155, II, CF; e o respeito pela lei complementar que discipline a matéria. No que tange à matéria, pontua-se que, atualmente, esta função vem sendo executada no direito brasileiro pela Lei Complementar de nº 116, de 31 de julho de 2003.
Assim sendo, a dicção constitucional determina a incidência do ISS sobre “serviços”. Segundo o festejado autor Kiyoshi Harada, “Prestar serviço significa servir, isto é, ato ou efeito de servir. É o mesmo que prestar trabalho ou atividade a terceiro, mediante remuneração”. E, portanto, conclui o referido autor: “O ISS recai sobre circulação de bem imaterial (serviço). Resulta de obrigação de fazer”. [1]
Dada a definição constitucional do ISS, necessário se faz o delineamento do Imposto Sobre a Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços, que representa uma referência para que se trace o campo de incidência do ISS. O ICMS consiste em um imposto estadual, que também recai sobre a prestação de serviços.
Basicamente, pode-se afirmar que o ICMS incide sobre os serviços de transporte – interestadual e intermunicipal; tanto de cargas quanto de pessoas – bem como sobre os serviços de comunicação. É nesta linha que se manifesta Sacha Calmon Navarro Coêlho:
“A Constituição reservou os serviços de transporte não estritamente municipais e comunicações aos Estados que os tributa como ICMS e atribuiu aos Municípios os serviços de qualquer natureza, inclusive os de transporte municipal”. [2]
Do ponto de vista da hierarquia normativa, é possível observar que a tributação sobre serviços se encontra prevista em sede de Constituição, que concede aos Municípios, aos Estados e ao Distrito Federal, a competência para fixar impostos decorrentes da prestação de serviços. Dentro desta sistemática, gozam os Estados e o Distrito Federal de exclusividade para tributar os serviços de transportes, interestaduais e intermunicipais, e de comunicação; ao passo que, aos Municípios, cabe a tributação sobre serviços de qualquer natureza; desde que não se fira a competência exclusiva dos Estados e do Distrito Federal, e de que esta se paute no quanto disposto pela Lei Complementar.
A delimitação do campo de incidência do tributo, constante na Lei Complementar nº 116/03, é operada por meio de uma lista anexa, na qual estão elencados os serviços que podem ser tributados pelo Município. O renomado autor Hugo de Brito Machado, neste sentido, defende que a lista deve ser interpretada de modo taxativo, estando o legislador municipal adstrito aos seus limites, conforme se confere, in verbis:
“A Lei Complementar nº 116/2003, com apoio nos artigos 146, inciso III, e 156, III, da vigente Constituição Federal, definiu o âmbito de incidência do ISS como a prestação dos serviços que indicou em extensa lista que a acompanha. E como isto vinculou o legislador dos vários Municípios brasileiros que não podem, portanto, definir como fato gerador do ISS outra coisa que não seja a prestação dos serviços naquela lista mencionados”. [3]
No tocante ao ISS, destaca-se ainda, como outro ponto de extrema importância, a discussão doutrinária que se cinge à existência de dois tipos de serviços: os serviços puros e os mistos. Os serviços puros são mais facilmente abordados pela doutrina, sendo poucas as questões que circundam a sua tributação. Os serviços tidos como mistos, por sua vez, representam um ponto polêmico para os tributaristas.
São tratados como mistos os serviços que não se adstringem à simples atividade, ao simples esforço, executado por um indivíduo em favor de outro: tratam-se de plexos indissociáveis de obrigações de dar, fazer e não fazer. Este ponto será adiante minudenciado, mas, em linhas gerais, pode-se afirmar que a jurisprudência vem se fixando no sentido de que os serviços mistos têm que ter sua natureza analisada caso a caso, e determinada com base na prevalência. É o que confirmam os julgados recentes do STJ, notadamente no REsp 953840.
Ademais, “exige-se da operação, para que sobre ela incida o ISS, caráter oneroso; sendo inadmissível a tributação dos serviços prestados a título gratuito. ” [4] A vedação da tributação das operações gratuitas possui justificativa elementar, que se encontra vinculada ao estudo da base de cálculo desse tributo.
A base de cálculo do ISS consiste no preço do serviço prestado. Quando o serviço é prestado de forma gratuita não há valor qualquer para ser fixado; inexistindo, nesse caso, base de cálculo para a cobrança do tributo.
Este é o entendimento da 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, que vedou a cobrança de ISS sobre serviços de prestação gratuita. O Tribunal firmou este entendimento quando se viu confrontado com um caso ocorrido no estado de Minas Gerais. Nesta ocasião, as instituições bancárias procederam no sentido de cobrar ISS pelo fornecimento de talões de cheque, entendendo este como serviço gratuito determinou que não pudesse ser cobrado Imposto Sobre Serviço deste, reformando a decisão do TJ-MG.
“O STJ entendeu que, embora não existam operações de fato gratuitas, cabe aos municípios demonstrar que houve cobrança de preço, ainda que de forma indireta ou oculta (…) O que não se pode é presumir que, na ausência de cobrança, o serviço custe um valor definido aleatoriamente”. [5]
No que diz respeito ao tema, aponta-se ainda a discussão doutrinária acerca do momento de ocorrência do fato gerador. Reputa-se ocorrido o fato gerador do tributo no momento das efetivas prestações do serviço. Isto posto, inadmissível se mostra a cobrança do ISS decorrente da mera contratação de serviços.
A fixação deste momento é de grande relevância para solucionar algumas questões jurídicas, dentre as quais se destaca a questão dos planos de saúde. Este impasse vinculado aos planos de saúde é polêmico, e amplamente discutido na atualidade. O ponto fulcral desta discussão consiste na delimitação do momento a partir do qual o contrato de plano de saúde está sendo executado; a partir de quando ele se configura como prestação de serviço.
Parte da doutrina defende, no entanto, que só se configura a prestação de serviços por parte dos planos, no momento em que o contratante se utiliza, efetivamente, do serviço contratado como potencial. Este entendimento acarreta como consequência a cobrança do ISS de forma pontual, e não continuada, como vem acontecendo.
Neste sentido, o jurista José Eduardo Soares de Melo, em sua obra Aspectos Teóricos e Práticos do ISS, se manifesta defendendo que, até a ocorrência efetiva da prestação do serviço médico, a relação contratual se caracterizaria tão somente como obrigação de dar (com pagamentos periódicos realizados pelo cliente para a empresa fornecedora do plano). In verbis:
“A empresa que se dedica à execução de plano de saúde, usualmente, tem obrigação de dar (reembolso dos custos médicos-hospitalares), suscetível de imposto da União; e não uma obrigação de fazer (prestação de serviços médicos), esta sujeita à competência municipal. Os serviços que vinculam o prestador (médico, hospital) ao tomador (pessoa que adere ao plano), sendo questionável a existência de relação (efetivos serviços de saúde) entre a mera empresa contratante do plano e o referido tomador”.[6]
Essa corrente doutrinária também defende que a incidência do ISS sobre planos de saúde resultaria em ofensa a um dos princípios regentes do Direito Tributário: qual seja, o princípio da Estrita Legalidade, em razão da referência inespecífica feita ao mesmo na Lista de Serviços anexa à Lei Complementar nº 116/2003.
Em síntese, essas são as linhas mestras que devem ser consideradas para que se tenha uma ideia geral acerca do Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza. Questões de maior relevância serão abordadas a seguir, de forma mais detida.
2.Problematização da interpretação do conceito de “serviço”
A Constituição Federal, em seu art. 156, III, disciplina o Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza. Dispõe o referido dispositivo que o ISS incidirá sobre os serviços de qualquer natureza que, não estando compreendidos no art. 155, II, estejam definidos em Lei Complementar:
“Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre:
III – serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 155, II, definidos em lei complementar.(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 3, de 1993)”
Isto posto, se faz fundamental a análise do sentido do vocábulo “serviço”, parâmetro imposto pela Constituição para orientar a regulamentação do campo de incidência do tributo em comento.
Segundo José Jayme de Macedo Oliveira, no âmbito jurídico, a noção de serviço faz referência à transação entre indivíduos, trata-se da atividade do indivíduo que, de modo oneroso, realiza esforço humano em prol dos interesses de outrem. Essa ideia de esforço remeteria, no campo do direito privado, às prestações “de fazer” algo em favor de um destinatário. In verbis:
“A prestação de serviço submetida ao ISS realiza-se por pessoa, física ou jurídica, mediante contraprestação onerosa (pagamento do preço), e consiste na transferência de bens (corpóreos ou não), materializada na venda de serviços. Serviço é qualquer esforço humano tendente a suprir uma necessidade ou interesse de alguém, mediante remuneração, sendo certo que a utilização de equipamentos ou materiais pelo prestador não descaracteriza tal atividade como prestação de serviço. Em síntese, a geratriz da obrigação de pagar ISS consiste na prestação “de fazer” alguma coisa em favor do destinatário, que paga por isso, pressupondo sempre a existência de um prestador e de um tomador (usuário) ”.[7]
Segundo o autor, aproximações se fazem entre as noções de “dar” e “fazer”; distinguindo-se uma da outra, potencialmente, pelo fim colimado pelas partes. Esclarece o referido doutrinador que a imprescindibilidade da obrigação de praticar algum ato, antes da entrega do bem negociado, seria o traço distintivo da prestação “de fazer”, objeto precípuo da incidência do ISS.
Esclarece, acertadamente, José Jayme Macedo Oliveira que, apesar da previsão constitucional de elaboração de uma lista, que elenque as diversas modalidades de serviços, os limites da noção de “serviço” não podem ser ignorados. O “serviço” é um instituto de Direito Privado, cuja origem e natureza privada são balizas imperativas para a elaboração da lista de serviços operada por lei complementar – é isto que impõe a melhor técnica interpretativa. Afinal, o constituinte originário não empregaria um termo técnico se desejasse que sua interpretação fosse realizada de modo atécnico.
Também o Código Tributário Nacional, que conta com status de lei complementar, em seu art. 110, estabelece que os “institutos, conceitos e formas de direito privado” não sofram manipulação pelo microcosmo tributarista quando empregados como limitações à incidência de tributos. É ainda neste diapasão que o doutrinador defende que a acepção adequada da expressão “serviço” não pode ter motivações econômicas, mas deve ser fixada tomando como base o direito posto.
Ainda sem se equivocar, assevera o autor que o argumento de que algumas atividades econômicas precisam se enquadrar como jurídicas, para que possam ser tributadas, em respeito à isonomia, não pode prevalecer. Inicialmente, pontua-se que só há violação à isonomia quando duas ações de mesmo caráter são tratadas de modo distinto; mas que não há qualquer violação apenas em razão do fato de que optou o constituinte ou o legislador pela tributação de determinada operação em detrimento de outra. Este tipo de escolha política não afronta de modo algum o tratamento isonômico dos contribuintes.
Ademais, a possibilidade de que a lei complementar alterasse a noção base de serviço – ou seja, que extrapolasse a mera atividade de regulamentação que lhe compete – representaria uma afronta direta ao princípio da segurança jurídica, que recebe especial atenção no ordenamento jurídico brasileiro.
No que tange à conceituação acima procedida, ratifica-se a sua utilidade. Afinal, ela reafirma o princípio da hierarquia constitucional, relembrando oportunamente que a interpretação do sistema jurídico deve ser operada com base na Constituição, e que esta lógica não pode ser invertida. Soma-se a este fator, realçando a importância de se trabalhar o conceito de “serviço”, o fato de que alguns contratos preveem obrigações “mistas”, nas quais tanto as prestações “de dar” quanto as “de fazer” podem ser vislumbradas, mescladas.
Nestas hipóteses, será necessário realizar uma análise detida da natureza da vinculação entre estes dois tipos de obrigações. Em alguns casos, será possível identificar e apartar a prestação do “serviço” do “fornecimento de bens”. Quando isto acontecer, recomenda-se que se proceda a aferição exata do valor das duas prestações, recaindo ISS apenas sobre as operações que efetivamente constituírem prestações de serviços.
Em outras circunstancias, no entanto, verifica-se a formação de um plexo indissociável de obrigações de ambas as naturezas. Quando este evento se verifica, a jurisprudência vem se fixando no sentido de que é necessário identificar a atividade predominante da operação: se será ela de “dar” ou “fazer”. Após a identificação da atividade predominante, à operação integral dispensar-se-ia o tratamento devido à operação principal, ocorrendo a incidência do ISS apenas na hipótese de predominar uma atividade concebida como serviço.
As considerações acima expostas podem ser melhor analisadas no excerto do julgado do STJ abaixo colacionado:
“PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. TRIBUTÁRIO. ISS. FRANQUIA (FRANCHISING). NATUREZA JURÍDICA HÍBRIDA (PLEXO INDISSOCIÁVEL DE OBRIGAÇÕES DE DAR, DE FAZER E DE NÃO FAZER). PRESTAÇÃO DE SERVIÇO. CONCEITO PRESSUPOSTO
PELA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988. AMPLIAÇÃO DO CONCEITO QUE EXTRAVASA O ÂMBITO DA VIOLAÇÃO DA LEGISLAÇÃO INFRACONSTITUCIONAL PARA INFIRMAR A PRÓPRIA COMPETÊNCIA
TRIBUTÁRIA CONSTITUCIONAL. INCOMPETÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. NÃO CONHECIMENTO DO RECURSO ESPECIAL.
VIOLAÇÃO DO ARTIGO 535, DO CPC. NÃO OCORRÊNCIA.(…)
5. A dicção constitucional, como evidente, não autoriza que a lei complementar inclua no seu bojo atividade que não represente serviço e, a fortiori, obrigação de fazer, porque a isso corresponderia franquear a modificação de competência tributária por lei complementar, com violação do pacto federativo, inalterável sequer pelo poder constituinte, posto blindado por cláusula pétrea.
6. O conceito pressuposto pela Constituição Federal de serviço e de obrigação de fazer corresponde aquele emprestado pela teoria geral do direito, segundo o qual o objeto da prestação é uma conduta do obrigado, que em nada se assemelha ao dare, cujo antecedente necessário é o repasse a outrem de um bem preexistente, a qualquer título, consoante a homogeneidade da doutrina nacional e alienígena, quer de Direito Privado, quer de Direito Público.
7. Deveras, o Código Tributário Nacional, como de sabença recepcionado como lei complementar, tratava dos Impostos sobre Serviços de Qualquer natureza, em seus artigos 71 a 73, revogados pelo Decreto-Lei nº 406/68, que estabeleceu normas gerais de Direito Financeiro, aplicáveis ao ICMS e ao ISS.
8. Consoante o aludido decreto-lei, constituía fato gerador do ISS a prestação, por empresa ou profissional autônomo, com ou sem estabelecimento fixo, de serviço constante da lista anexa ao diploma legal, ainda que sua prestação envolvesse o fornecimento de mercadoria.(…)
12. A mera inserção da operação de franquia no rol de serviços constantes da lista anexa à Lei Complementar 116/2003 não possui o condão de transmudar a natureza jurídica complexa do instituto, composto por um plexo indissociável de obrigações de dar, de fazer e de não fazer.” (AgRg no REsp nº 953.840 – RJ. Relator: Ministro Luiz Fux. Data de julgamento: 20/08/2009) ”
Para finalizar, pode-se criticar, na concepção exposta, a vinculação, estabelecida pelo autor, entre a ideia de serviço e a ideia de um esforço necessariamente dinâmico. Afinal, apesar de complexo, não se pode descartar a possibilidade de que o “serviço” consista em uma prestação “de não fazer”, conceito que, em regra geral, vem sendo desprezado pela doutrina.
3.A incidência do ISS sobre os serviços públicos
A incidência do ISS sobre os serviços de natureza pública é uma questão abordada de modo polêmico pela doutrina. Apesar da tentativa ensaiada pela Lei Complementar nº 116, a responsável pela regulamentação do tributo em comento, há dissenso doutrinário quanto à possibilidade de incidência do ISS sobre os serviços públicos.
Dispõe o dispositivo legal, em seu art. 1º, §3º, do seguinte modo:
“Art. 1o O Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza, de competência dos Municípios e do Distrito Federal, tem como fato gerador a prestação de serviços constantes da lista anexa, ainda que esses não se constituam como atividade preponderante do prestador. (…)
§ 3o O imposto de que trata esta Lei Complementar incide ainda sobre os serviços prestados mediante a utilização de bens e serviços públicos explorados economicamente mediante autorização, permissão ou concessão, com o pagamento de tarifa, preço ou pedágio pelo usuário final do serviço. ”
Assim, a interpretação literal do dispositivo conduz ao entendimento de que o Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza recairá sobre os serviços prestados mediante a utilização de bens públicos e sobre os serviços públicos cuja exploração cumpra um escopo econômico, e seja procedida mediante autorização, permissão ou concessão, e pelas quais, a empresa exploradora da atividade receba, do usuário final, em contrapartida, tarifa, preço ou pedágio.
Segundo Hugo de Brito Machado[8], a pretensão do legislador infraconstitucional de que o ISS incida sobre os serviços públicos consiste em “verdadeiro absurdo” e evidencia a superposição dos interesses econômicos ao respeito pela lógica e pela coerência do ordenamento. In verbis, declara o renomado autor:
“Como se vê, pretende-se que o ISS incida sobre os serviços públicos – o que constitui verdadeiro absurdo, pois implica onerar os custos destes, que, por serem públicos, devem ser prestados ao usuário final pelo menor preço possível, pois se destinam a atender as necessidades essenciais da população.
A pretensão de cobrar o ISS onerando os serviços públicos bem demonstra que os governantes não têm o menor respeito pelo Direito, cujos princípios violam frequentemente na ânsia de arrecadar somas cada vez maiores de recursos financeiros, sempre insuficientes para cobrir os custos sempre crescentes da atividade estatal. ”
Apesar da análise realizada pelo festejado autor, e contida no seu Curso de Direito Tributário, tratar-se de uma análise superficial da questão, cabe, no presente estudo, analisar de forma mais detida os fundamentos sobre nos quais ela se baseia.
Por óbvio, a mera alegação de que um dispositivo foi elaborado em desconformidade com o “Direito” não pode se pretender científico. Entretanto, a afirmação de que os serviços públicos devem ser oferecidos, para o usuário final, pelo menor preço possível consubstancia o princípio da modicidade, que deve balizar a atuação do Poder Público.
Em sua obra Curso de Direito Administrativo[9], o renomado autor Celso Antônio Bandeira de Mello faz referência ao princípio da modicidade como um dos dez princípios que devem orientar a prestação de serviços públicos pela Administração. Para o autor, a modicidade é uma decorrência lógica da relevância do serviço, e da especialidade do tratamento que a ele é dispensado. Preleciona o referido doutrinador:
“Princípio da modicidade das tarifas, deveras, se o Estado atribui tão assinalado relevo à atividade que a conferiu tal qualificação, por considerá-lo importante para o conjunto de membros do corpo social, seria rematado dislate que os integrantes desta coletividade a que se destinam devessem, para desfrutá-lo, pagar importâncias que onerassem excessivamente e, pior que isto, que os marginalizassem.
Destarte, em um país como o Brasil, no qual a esmagadora maioria do povo vive em estado de pobreza ou miserabilidade, é óbvio que o serviço público, para cumprir sua função jurídica natural, terá de ser remunerado por valores baixos, muitas vezes subsidiados. Tal circunstância – que não ocorre em países desenvolvidos -, dificulta ou impossibilita a obtenção de resultados bem-sucedidos com o impropriamente chamado movimento das “privatizações”, isto é, da concessão de tais serviços a terceiros para que os explorem com evidentes e naturais objetivos de lucro. ”
De fato, a atribuição do caráter de “público”, pelo sistema, a um tipo de serviço, de ter repercussões inúmeras, e, entre elas tem-se o reconhecimento da importância do serviço tido como público.
Acontece, porém, que a análise do tema não pode se restringir a um estudo sob a ótica do destinatário final do serviço, nem mesmo é possível que se leve em conta apenas uma única conotação do caráter público de um serviço.
Cumpre, então, realizar uma breve análise acerca do caráter público que se atribui a um serviço.
Segundo José Jayme Macedo de Oliveira, o conceito de serviço público não é unívoco, na doutrina, e tende a oscilar conforme se alteram o momento histórico e as necessidades e contingências políticas, econômicas, sociais e culturais de uma determinada comunidade.
A Constituição brasileira define, em seu art. 173, o modelo de exploração das atividades econômicas que deve ser adotado pelo sistema jurídico brasileiro:
“Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei. ”
Isto posto, estabeleceu a Constituição que a exploração das atividades econômicas deve ser feita, em regra, pela iniciativa privada, sendo autorizada a atuação econômica do Estado apenas em caráter de exceção, nas hipóteses de imperativo de segurança nacional e relevante interesse coletivo, e desde que haja previsão legal.
Celso Antônio Bandeira de Mello, ao tratar dos serviços públicos[10] descreve-os como sendo os serviços que reúnem um elemento formal, consubstanciado na submissão da execução da atividade ao regime de direito público; e um substrato material, que consiste no traço da singularidade, que se pode atribuir à fruição da atividade pelo destinatário final. In literis:
“Conclui-se, pois, espontaneamente, que a noção de serviço público há de se compor necessariamente de dois elementos: (a) um deles, que é seu substrato material, consistente na prestação de utilidade ou comodidade fruível singularmente pelos administrados; o outro, (b) traço formal indispensável, que lhe dá justamente caráter de noção jurídica, consistente em um específico regime de Direito Público, isto é, numa “unidade normativa”.
Esta “unidade normativa” é formada por princípios e regras caracterizados pela supremacia do interesse público sobre o interesse privado e por restrições especiais, firmados uns e outros em função da defesa de valores especialmente qualificados no sistema normativo”.
Desse modo, respeitadas as disposições constitucionais que impõem a certos serviços o caráter público, bem como que sua exploração seja realizada de forma privativa pelo Estado – ou não –, nada impede que a legislação ordinária elenque os serviços que devem ser tratados como públicos.
Superado este ponto, é possível analisar mais direta e minuciosamente a questão da incidência do ISS sobre os serviços públicos.
Inicialmente, não se pode olvidar que a Constituição, texto máximo do ordenamento jurídico brasileiro, estabelece, em seu art. 150, VI, “a”, a imunidade recíproca, uma limitação ao poder de tributar. A imunidade recíproca, a grosso modo, consiste na norma que impede que a instituição, pelos entes políticos, de impostos sobre o patrimônio, a renda e os serviços de outros entes políticos:
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: (…)
VI – instituir impostos sobre:
a) patrimônio, renda ou serviços, uns dos outros;
Deste modo, inicialmente, é crucial que se reconheça a impossibilidade da Lei Complementar de instituir a cobrança do ISS – imposto municipal – sobre os serviços públicos executados pela União, pelos Estados-membros ou pelo Distrito Federal.
Segundo Gilmar Ferreira Mendes, “a imunidade recíproca nada mais é do que consequência lógica de princípios instituídos pela Constituição Federal, e considerados pilares do atual sistema jurídico brasileiro, quais sejam: o federalismo, a isonomia das pessoas políticas e a autonomia municipal. Para ele, trata-se de regra da tributação que deveria ser seguida ainda que inexistente a previsão expressa no texto constitucional, uma vez que a tributação pressupõe a supremacia do sujeito ativo em relação ao sujeito passivo”.[11]
Ademais, o §2º do artigo em comento assim dispõe:
“§ 2º – A vedação do inciso VI, “a”, é extensiva às autarquias e às fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, no que se refere ao patrimônio, à renda e aos serviços, vinculados a suas finalidades essenciais ou às delas decorrentes. ”
Desse modo, também às autarquias e fundações – que, por muitos, são tidas como tipos especiais de autarquias, ou autarquias fundacionais – não têm suas atividades submetidas à incidência do ISS, desde que estes serviços se relacionem com as suas finalidades essenciais, ou que dela decorram.
Conforme leciona o tributarista Eduardo Sabbag, esta não se trata de uma desoneração “absoluta”, mas tão-somente “condicionada”:
“É que a entidade autárquica ou fundacional, para fruir a imunidade, deve cumprir a finalidade essencial ou alguma que dela decorra.
Sendo assim, quando se menciona, na parte final do comando, a expressão “finalidades essenciais” –, tem-se uma cláusula que “vem objetivar essa imunidade tipicamente pessoal”, alcançando-se os serviços, patrimônio e a renda, ou seja, “tudo quanto for de caráter instrumental ou funcional da autarquia”.
E completa, definindo “finalidade essencial” como aquela que se encontra vinculada ao propósito principal da entidade.[12]
Por fim, é relevante atentar para o quanto disposto no parágrafo terceiro do art. 150, VI, “a” da Constituição Federal:
§ 3º – As vedações do inciso VI, “a”, e do parágrafo anterior não se aplicam ao patrimônio, à renda e aos serviços, relacionados com exploração de atividades econômicas regidas pelas normas aplicáveis a empreendimentos privados, ou em que haja contraprestação ou pagamento de preços ou tarifas pelo usuário, nem exonera o promitente comprador da obrigação de pagar imposto relativamente ao bem imóvel.
Segundo a dicção do dispositivo supracitado, a imunidade recíproca não possui o condão de limitar a incidência do ISS sobre os serviços relacionados com a exploração de atividades econômicas, quando estas se encontrarem submetidas ao regime aplicado aos empreendimentos privados, ou em que haja contraprestação ou pagamento de preços ou tarifas pelos usuários.
Assim sendo, pode-se traçar, em linhas gerais, o tratamento adequado para modular a incidência do ISS sobre os serviços públicos. Em consonância com a linha de pensamento esboçada por José Jayme Macedo de Oliveira, pode-se afirmar que o ISS constitui imposto inexigível, quando se toma por referência os serviços cuja competência é exclusivamente das pessoas públicas, e cuja execução apenas por elas é realizada. No tocante aos serviços de sua competência exclusiva, que, entretanto, podem ser executados por instituições privadas, concessionárias ou permissionárias.
Também às empresas públicas e às sociedades de economia mista será dispensado o tratamento dado às instituições privadas, às concessionárias e às permissionárias. Isto decorre da ausência de previsão legal que lhe conceda tratamento diferenciado. [13]
Como já relatado no presente trabalho, o ISS incide apenas sobre a prestação de serviços a título oneroso. Isto significa que a operação que comporta incidência do imposto será aquela remunerada a título de taxa ou tarifa – também denominada “preço público”.
De modo sintéticos, a taxa pode ser definida como “tributo imediatamente vinculado à ação estatal, atrelando-se à atividade pública, e não à ação do particular”. [14] Assim, além das características típicas dos tributos, a taxa possui como diferencial o enquadramento de uma ação estatal como seu fato gerador. Esta ação estatal, conforme disposição constitucional (art. 145, II) consiste no exercício do poder de polícia ou a utilização – efetiva ou potencial – de um serviço público específico ou divisível, oferecido pelo Estado.
Já a tarifa pode ser sucintamente descrita como “o preço de venda do bem, exigido por empresas prestacionistas do serviço público (concessionárias e permissionárias), como se comuns vendedoras fossem”.[15]
Explicitados estes conceitos, infere-se a impossibilidade de cobrança do ISS sobre os serviços públicos prestados mediante pagamento de taxa, e a sua possibilidade no que toca aos serviços passíveis de cobrança de tarifa. Afinal, a cobrança de novo imposto sobre um mesmo fato gerador – qual seja, o serviço público, que já enseja a cobrança de taxa – representa bis in idem, inadmissível no âmbito do Direito Tributário.
Bem de ver, a interpretação que se faça do art. 1º, §3º da Lei Complementar nº 116 de 2003, neste sentido, se encontrará em consonância com a Constituição. É este, portanto, o entendimento que se deve fazer da incidência do ISS sobre os serviços prestados “mediante a utilização de bens e serviços públicos explorados economicamente mediante autorização, permissão ou concessão, com o pagamento de tarifa, preço ou pedágio pelo usuário final do serviço”.
3.1 A questão da incidência do imposto sobre serviço de qualquer natureza sobre os serviços prestados pelas empresas públicas e sociedades de economia mista
Conforme trabalhado alhures, por ausência de previsão constitucional expressa, a doutrina consolidou o entendimento de que não caberia a extensão da imunidade recíproca às empresas públicas e às sociedades de economia mista. As atividades desenvolvidas por estas entidades, os serviços por elas prestados, portanto, necessariamente deveriam ser objeto da cobrança do ISS. [16] No entanto, é necessário que se registre, no presente trabalho, o tratamento que a matéria vem recebendo por parte do Supremo Tribunal Federal.
Conforme refere o festejado autor Eduardo Sabbag, verifica-se que o STF, de forma reiterada, vem se manifestando no sentido de que as empresas públicas e sociedades de economia mista, quando executoras de serviços públicos cuja prestação seja obrigatória pelo Estado – a título exclusivo – devem ter a si estendidas o benefício da imunidade recíproca, de sede constitucional.
Isto se deve à interpretação segundo a qual, nestas circunstancias, estes entes atuam como “‘longa manus’ das pessoas políticas que, por meio de lei, as criam e lhes apontam os objetivos públicos a alcançar”. [17] Entre as empresas públicas já beneficiadas por este tratamento em relação a tributos diversos, podemos apontar a Empresa de Correios e Telégrafos (RE n. 407.099/RS), uma empresa pública; e a Companhia de Águas e Esgotos de Rondônia (Ação Cautelar n. 1550-2), uma sociedade de economia mista. Especificamente no que se refere ao ISS, pode-se fazer referência a dois julgados: o RE-AgR 363.412/BA, 2ª T., rel. Min. Celso de Mello, j.07-08-2007, do STF, que assegurou à INFRAERO os efeitos protetores da imunidade recíproca, e o julgado REsp 1.190-088, rel. Min. Luiz Fux, j.31-05-2010, do STJ, que reproduziu este entendimento quanto, à mesma empresa pública federal:
“E M E N T A: INFRAERO – EMPRESA PÚBLICA FEDERAL VOCACIONADA A EXECUTAR, COMO ATIVIDADE-FIM, EM FUNÇÃO DE SUA ESPECÍFICA DESTINAÇÃO INSTITUCIONAL, SERVIÇOS DE INFRA-ESTRUTURA AEROPORTUÁRIA – MATÉRIA SOB RESERVA CONSTITUCIONAL DE MONOPÓLIO ESTATAL (CF, ART. 21, XII, “C”) – POSSIBILIDADE DE A UNIÃO FEDERAL OUTORGAR, POR LEI, A UMA EMPRESA GOVERNAMENTAL, O EXERCÍCIO DESSE ENCARGO, SEM QUE ESTE PERCA O ATRIBUTO DE ESTATALIDADE QUE LHE É PRÓPRIO – OPÇÃO CONSTITUCIONALMENTE LEGÍTIMA – CRIAÇÃO DA INFRAERO COMO INSTRUMENTALIDADE ADMINISTRATIVA DA UNIÃO FEDERAL, INCUMBIDA, NESSA CONDIÇÃO INSTITUCIONAL, DE EXECUTAR TÍPICO SERVIÇO PÚBLICO (LEI Nº 5.862/1972) – CONSEQÜENTE EXTENSÃO, A ESSA EMPRESA PÚBLICA, EM MATÉRIA DE IMPOSTOS, DA PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL FUNDADA NA GARANTIA DA IMUNIDADE TRIBUTÁRIA RECÍPROCA (CF, ART. 150, VI, “A”) – O ALTO SIGNIFICADO POLÍTICO-JURÍDICO DESSA GARANTIA CONSTITUCIONAL, QUE TRADUZ UMA DAS PROJEÇÕES CONCRETIZADORAS DO POSTULADO DA FEDERAÇÃO – IMUNIDADE TRIBUTÁRIA DA INFRAERO, EM FACE DO ISS, QUANTO ÀS ATIVIDADES EXECUTADAS NO DESEMPENHO DO ENCARGO, QUE, A ELA OUTORGADO, FOI DEFERIDO, CONSTITUCIONALMENTE, À UNIÃO FEDERAL – DOUTRINA – JURISPRUDÊNCIA – PRECEDENTES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – AGRAVO IMPROVIDO.”
– A INFRAERO, que é empresa pública, executa, como atividade-fim, em regime de monopólio, serviços de infraestrutura aeroportuária constitucionalmente outorgados à União Federal, qualificando-se, em razão de sua específica destinação institucional, como entidade delegatária dos serviços públicos a que se refere o art. 21, inciso XII, alínea “c”, da Lei Fundamental, o que exclui essa empresa governamental, em matéria de impostos, por efeito da imunidade tributária recíproca (CF, art. 150, VI, “a”), do poder de tributar dos entes políticos em geral.
Consequente inexigibilidade, por parte do Município tributante, do ISS referente às atividades executadas pela INFRAERO na prestação dos serviços públicos de infraestrutura aeroportuária e daquelas necessárias à realização dessa atividade-fim.
“O ALTO SIGNIFICADO POLÍTICO-JURÍDICO DA IMUNIDADE TRIBUTÁRIA RECÍPROCA, QUE REPRESENTA VERDADEIRA GARANTIA INSTITUCIONAL DE PRESERVAÇÃO DO SISTEMA FEDERATIVO. DOUTRINA. PRECEDENTES DO STF. INAPLICABILIDADE, À INFRAERO, DA REGRA INSCRITA NO ART. 150, § 3º, DA CONSTITUIÇÃO.”
A submissão ao regime jurídico das empresas do setor privado, inclusive quanto aos direitos e obrigações tributárias, somente se justifica, como consectário natural do postulado da livre concorrência (CF, art. 170, IV), se e quando as empresas governamentais explorarem atividade econômica em sentido estrito, não se aplicando, por isso mesmo, a disciplina prevista no art. 173, § 1º, da Constituição, às empresas públicas (caso da INFRAERO), às sociedades de economia mista e às suas subsidiárias que se qualifiquem como delegatárias de serviços públicos.
4.Taxatividade
4.1 Lista de serviços do ISS: taxativa ou enumerativa?
Desde a instituição do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS) com a Emenda Constitucional nº 18/65 e a partir da primeira lista de serviços estabelecida pelo Decreto-lei nº 406/68, surgiu grande divergência a respeito da natureza da exposição dos serviços em espécie, se seria tal exposição taxativa ou enumerativa.
De um lado, se posicionaram doutrinadores como Geraldo Ataliba (ISS – lista de serviços tributáveis – Falácia de sua exaustividade. Estudo e pareceres de Direito Tributário, vol. 3. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980), defendendo o caráter enumerativo da lista, já por outro lado, em posicionamento majoritário da doutrina e jurisprudência, há grandes nomes que advogam pela taxatividade da lista (Aliomar Baleeiro, por exemplo, no julgamento do RE 77.183-SP).
O primeiro defende a natureza aberta da lista com base nos argumentos de que, primeiramente, o termo “congêneres”, que se faz presente em diversos itens e subitens da lista, denotaria a intenção da lei de ser a mais extensiva possível quanto ao campo de abrangência dos serviços previstos. Outro ângulo apontado se refere à questão da definição constitucional da competência tributária que, segundo este grupo de doutrinadores, ao se atribuir um status de numerus clausus à listagem da Lei Complementar estaria se dando ao Congresso Nacional excessivo poder para limitar a competência tributária dos Municípios, o que feriria de modo capital o previsto na Constituição Federal de 1988.
O outro grupo, majoritário e de posicionamento mais acertado, resguarda a natureza taxativa da lista embasado em princípios e dispositivos previstos na Carta Magna, como por exemplo, o princípio da segurança jurídica, da legalidade e tipicidade cerrada da lei, e ressaltando que se a lista fosse aberta se caracterizaria flagrante caso de uso da analogia para cobrança de tributo não previsto em lei, o que é expressamente vedado pelo Código Tributário Nacional em seu artigo 108, § 1º.
4.2 Posicionamento do STF
Nesta seara, o posicionamento da Suprema Corte pátria, pode se caracterizar como defensora da taxatividade mitigada da lista. Pois, conforme o notado em seus julgados, o STF corrobora a taxatividade da lista de serviços do ISS, porém admite a interpretação analógica e extensiva de seus itens, e vedando de forma veemente o uso da analogia.
Neste ponto, note-se alguns julgados do STF a respeito:
Ementa: “CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. ISS. LEI COMPLEMENTAR: LISTA DE SERVIÇOS: CARÁTER TAXATIVO. LEI COMPLEMENTAR 56, DE 1987: SERVIÇOS EXECUTADOS POR INSTITUIÇÕES AUTORIZADAS A FUNCIONAR PELO BANCO CENTRAL: EXCLUSÃO.56I. – É taxativa, ou limitativa, e não simplesmente exemplificativa, a lista de serviços anexa à lei complementar, embora comportem interpretação ampla os seus tópicos. Cuida-se, no caso, da lista anexa à Lei Complementar 56/87.56II. – Precedentes do Supremo Tribunal Federal. III. – Ilegitimidade da exigência do ISS sobre serviços expressamente excluídos da lista anexa à Lei Complementar 56/87.56IV. – RE conhecido e provido. (361829 RJ, Relator: CARLOS VELLOSO, Data de Julgamento: 12/12/2005, Segunda Turma, Data de Publicação: DJ 24-02-2006 PP-00051 EMENT VOL-02222-03 PP-00593 LEXSTF v. 28, n. 327, 2006, p. 240-257 RIP v. 8, n. 36, 2006, p. 299-310) ”.
Ementa: “Trata-se de agravo de instrumento contra decisão que negou seguimento a recurso extraordinário interposto de acórdão que porta a seguinte ementa: ‘EXECUÇÃO FISCAL ‘ ISS ‘ SERVIÇOS ACESSÓRIOS PRESTADOS POR BANCOS ‘ TAXATIVIDADE DA LISTA. Os serviços bancários não incluídos na lista anexa ao Decreto-Lei nº 406/68, com a redação dada pela Lei Complementar nº 56/87, não possuem caráter autônomo, pois inserem-se no elenco das operações bancárias originárias, executadas de forma acessória, no propósito de viabilizar o desempenho das atividades-fim inerentes as instituições financeiras. A lista de serviços é taxativa, não se admitindo a aplicação da analogia, visando alcançar hipóteses de incidência diversas da ali consignadas’ (fl. 276). No RE, fundado no art. 102, III, a, da Constituição Federal, alegou-se ofensa ao art. 156, III, da mesma Carta. O agravo não merece acolhida. O acórdão recorrido decidiu a questão com base na legislação infraconstitucional (DL 406/68). A afronta à Constituição, se ocorrente, seria indireta. Incabível, portanto, o recurso extraordinário (AI 501.290/BA, Rel. Min. Sepúlveda Pertence). Ademais, para dissentir da conclusão a que chegou o acórdão recorrido, necessário seria o reexame do conjunto fático-probatório constante dos autos, o que atrai a incidência da Súmula 279 do STF. Por fim, observa-se que, com a negativa de seguimento ao recurso especial pelo Superior Tribunal de Justiça (Ag 674342/MG, com trânsito em julgado em 12/4/2007), tornaram-se definitivos os fundamentos infraconstitucionais que amparam o acórdão recorrido (Súmula 283 do STF). Isso posto, nego seguimento ao recurso. Publique-se. Brasília, 3 de março de 2009. Ministro RICARDO LEWANDOWSKI – Relator – 140656102IIIaConstituição Federal406Constituição (735341 MG, Relator: RICARDO LEWANDOWSKI, Data de Julgamento: 03/03/2009, Data de Publicação: DJe-048 DIVULG 12/03/2009 PUBLIC 13/03/2009) ”.
Ementa: “CARTOES DE CRÉDITO. IMPOSTO DE LICENCA. A ELE ESTAO SUJEITAS AS ENTIDADES QUE OS EMITEM, FACE A NATUREZA DAS OPERAÇÕES QUE DE SUA EXPEDIÇÃO SE ORIGINOU. II. APLICAÇÃO DO DECRETO-LEI N.406/68, COM A REDAÇÃO QUE LHE ATRIBUIU O DECRETO-LEI N….. 834/69, ART. 3, VIII. III. A LISTA A QUE SE REFEREM O ART. 24, II DA CONSTITUIÇÃO, E 8 DO DECRETO-LEI N. 83/69 E TAXATIVA, EMBORA CADA ITEM DA RELAÇÃO COMPORTE INTERPRETAÇÃO AMPLA E ANALOGICA. IV. RECURSO EXTRAORDINÁRIO NÃO CONHECIDO. (75952 SP, Relator: THOMPSON FLORES, Data de Julgamento: 28/10/1973, SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJ 02-10-1974 PP-*****) ”.
4.3 Analogia x Interpretação analógica
Neste diapasão, vale destacar a controvérsia gerada pelo Supremo Tribunal Federal em, ao mesmo tempo, considerar a lista taxativa e admitir a sua interpretação analógica. Tal dúvida se mostrando mais forte, principalmente, no que concerne ao limiar nebuloso que distingue a interpretação analógica da analogia (expressamente vedada pela Corte).
Conforme magistério de Damásio de Jesus: “a diferença entre interpretação analógica e analogia reside na volunta legis: na primeira, pretende a vontade da norma abranger os casos semelhantes por ela regulados; na segunda ocorre o inverso: não é pretensão da lei aplicar o seu conteúdo aos casos análogos, tanto que silencia a respeito, mas o intérprete assim o faz, suprindo a lacuna” (Direito Penal. Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 2003, pág. 46).
Esta distinção apresenta fundamental importância principalmente no que se refere ao emprego dos termos “congêneres” ou em subitens como o “6.04” (Ginástica, dança, esportes, natação, artes marciais e demais atividades físicas) ou o “7.09” (varrição, coleta, remoção, incineração, tratamento, reciclagem, separação e destinação final de lixo, rejeitos e outros resíduos quaisquer), pois nos itens e subitens presentes no texto legal em que se têm essas expressões extensivas se admite a interpretação analógica, porque queda evidente a intenção do legislador em embarcar situações além das expressamente previstas no texto legal, porém os itens e subitens que não apresentam estes termos extensivos, tem se considerado a interpretação como sendo literal, pois do contrário pode se considerar emprego do uso de analogia (expressamente vedado).
4.4 Interpretação: literal, analógica/extensiva ou valorativa?
Por fim, ainda no campo da discussão concernente à hermenêutica da lista de serviços do ISS, se levanta um último ponto. Afinal, seria a interpretação literal (exatamente o que está escrito no texto legal), analógica/extensiva (se fazendo uso dos termos de abertura para se abarcar o que não está expressamente previsto na lei), ou valorativa (emprego dos valores para se fazer a interpretação)? Nesta posição, a despeito de ilustres posicionamentos contrários, há o entendimento, seguindo a posição do grande tributarista Johnson Barbosa Nogueira, de que a interpretação da lista deve ser valorativa, pois se deve fazer uso dos valores tributário-constitucionais para se chegar a uma exegese mais acertada da real extensão dos tipos de serviços previstos e que devem ser abrangidos pela lista de serviços do ISS.
Conclusão
Findada a explanação do que consideramos serem os aspectos mais relevantes acerca das inconstitucionalidades da lista de serviços do ISS, temos o intuito de concluir o presente trabalho sem fazer declarações absolutas do que fere ou não a Constituição. Por óbvio que alguns pontos discutidos já têm Jurisprudência pátria pacífica como o caso dos planos de saúde sobre os quais não incidem ISS até o momento da utilização efetiva do mesmo, e a questão dos transportes cuja competência tributária é do Estado através do ICMS no qual não pode haver interferência do município. Outros temas abordados geram polêmica entre a posição do legislador e a doutrina, é o caso dos serviços públicos que estão previstos em lei para incidência do ISS, mas considerado abusivo pela doutrina, por ferir o princípio da modicidade dos serviços públicos. O que mais importa ressaltar é o fenômeno da dinamicidade do Direito, perceptível claramente através das atualizações periódicas da lista de serviços, de extrema importância visto que a função do Direito Tributário e de todos os outros ramos do Direito é adequar o ordenamento jurídico à necessidade do Estado e dos cidadãos. É nesse toar que se mostra a importância de discutir a lista de serviços do ISS e suas inconstitucionalidades, pois, sendo o direito, um fenômeno em constante transformação cabe a nós operadores e futuros operadores do Direito nos encarregar das transformações necessárias ao bem-estar do Estado e de todos aqueles que dele participam.
Referências
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Notas:
[1] HARADA, Kiyoshi. Direito Tributário Municipal: Sistema tributário municipal, legislação comentada…. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 139
[2] COÊLHO, Sacha Calmon Navarro, Comentários à constituição de 1988: Sistema Tributário. 5 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1993, p. 263
[3] MACHADO, Hugo de Brito. A base de cálculo do ISS e as Subempreitadas. Revista Dialética de Direito Tributário, São Paulo, nº 108, p. 73, set. 2004.
[4] SABBAG, Eduardo. Manual de Direito Tributário. 3ª Edição. Editora Saraiva. São Paulo: 2011. P.299-300. P.995
[5] http://apet.jusbrasil.com.br/noticias/2766906/stj-suspende-cobranca-de-iss-sobre-envio-de-talao-de-cheque
[6] DE MELO, José Eduardo Soares. ISS – Aspectos Teóricos e Práticos. 5ª Edição.Editora Dialética. 2008
[7] MACÊDO OLIVEIRA, José Jayme de. Impostos Municipais: ISS – IPTU – ITBI, São Paulo: Saraiva, 2009. p.36.
[8] MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 31ª Edição. Malheiros Editores, 2010. P. 424.
[9] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo, 23ª Edição. Malheiros Editores, 2007. P. 659.
[10] Op. Cit, p. 655.
[11] “Entre as imunidades genéricas, está a imunidade recíproca. Trata-se da impossibilidade de os entes federados tributarem-se uns aos outros, como decorrência do princípio federativo, do princípio da isonomia das pessoas políticas e da autonomia municipal. É regra de imunidade que existiria ainda que não fosse prevista expressamente, já que a tributação, sobretudo por meio de impostos, pressupõe a supremacia daquele que cobra a exação em relação a quem paga” in MENDES; Gilmar Ferreira e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional, 6ª Edição. Editora Saraiva. São Paulo, 2011.
[12] SABBAG, Eduardo. Manual de Direito Tributário. 3ª Edição. Editora Saraiva. São Paulo: 2011. P.299-300.
[13] Esta questão será melhor enfrentada no subitem seguinte.
[14] SABBAG, Eduardo. Op. Cit, p. 413.
[15] SABBAG, Eduardo. Op. Cit, p. 440.
[16] MACÊDO OLIVEIRA, José Jayme de. Impostos Municipais: ISS – IPTU – ITBI, São Paulo: Saraiva, 2009.
[17] SABBAG, Eduardo. Op. Cit, p.302.
Juliane Andrade Pereira – advogada graduada em Direito em 2014 pela Universidade Federal da Bahia