A lei que define ‘praça’ como município aplica-se a fatos pretéritos?
Por Tercio Sampaio Ferraz Junior
O Congresso aprovou o PL 2.110/2019 para definir que “praça”, para efeito da norma antielisiva do Valor Tributável Mínimo (VTM), equivale a “município”. A norma foi vetada pelo presidente da República em outubro de 2021, mas o veto foi derrubado em julho de 2022, o que resultou na edição da Lei 14.395/2022. O foco estava no artigo 15 da Lei nº 4.502/64, que determina que o Valor Tributável Mínimo (VTM) não pode ser menor que o preço usual no mercado atacadista da região do remetente, isto é, os preços que são praticados onde a indústria está localizada.
A necessidade de tal clarificação surgiu após interpretações divergentes que resultaram em insegurança jurídica, com a Receita Federal aplicando o conceito de “praça” de maneiras variadas, por vezes abrangendo áreas mais extensas que o município, como a região metropolitana ou o estado.
Recentemente, o Carf, em acórdão decidido por voto de qualidade, entendeu que o conceito de praça, utilizado no artigo 195, I, do Ripi/2010, não tendo sido o legislador específico quanto à abrangência territorial, comporta interpretação, melhor se identificando, conforme vem sendo entendido pela recente jurisprudência do órgão, com o mercado, que não tem necessária identidade com configurações geopolíticas, em especial a de um município.
É diante disso que a nova lei procura estabilizar essas interpretações, especificando que os preços considerados para o cálculo do VTM devem se restringir à localidade municipal do remetente.
Ao se valer da expressão “considera-se praça o município”, o legislador veiculou comando normativo interpretativo. Entre veto e rejeição de veto, tratando-se de lei interpretativa, nos termos do artigo 106, inciso I, do CTN (Código Tributário Nacional), foram levantados argumentos contra a aplicação retroativa do dispositivo a fatos pretéritos em nome de uma suposta insegurança jurídica para as relações tributárias correspondentes.
Recente acórdão do Carf entende que a retroatividade da lei é uma exceção e deve estar explícita na lei. Nesta esteira de raciocínio, se o legislador tivesse a intenção de retroagir a norma contida na Lei nº 14.395/2022, teria redigido a lei de forma a constar no corpo do artigo seu caráter interpretativo.
Retroatividade em lei interpretativa
A retroatividade de leis interpretativas é, na verdade, um mecanismo de garantia da segurança jurídica. Ela visa a manter a consistência e previsibilidade do sentido das normas ao longo do tempo, impedindo que interpretações de eventos passados tornem incertos o significado de leis anteriores.
Aplicar-se a fato pretérito significa manter um sentido determinado para fatos que ocorram desde a promulgação da lei interpretada. Ou seja, no exercício de sua competência, o legislador confere à sua norma anterior o sentido que sempre terá tido desde o passado.Mais precisamente, a lei interpretativa é retroativa na produção de um efeito: estabelece um sentido autêntico para o entendimento da lei interpretada desde sua promulgação. A lei interpretativa, nesses termos, não contém, propriamente, disposição nova, não cria nem reconhece relações antes inexistentes, pois apenas clarifica o sentido de norma vigente frente a interpretações divergentes a gerar incerteza perturbadora.
É esse tipo de retroatividade que se encontra no artigo 106, inciso I, do Código Tributário Nacional (CTN), ao estabelecer que a lei se aplica a ato ou fato pretérito sempre que expressamente interpretativa, desde que não imponha penalidades. Com base nele e em nome da segurança jurídica, a Lei nº 14.395/22 aplica-se retroativamente para corrigir a instabilidade no uso do conceito de “praça”, alinhando-o com a definição legislativa de município e reforçando a confiabilidade nas obrigações tributárias.
Essa aplicação do sentido atribuído a praça pela Lei nº 14.395/22 a fatos ocorridos antes de sua promulgação, mas ainda não julgados ou penalizados, visa a ajustar a interpretação sem impor novas sanções. Em situações em que autos de infração lavrados e com processos administrativos encerrados, porém em fase de discussão na esfera judicial, seja em embargos à execução fiscal ou em ações anulatórias, autoriza-se, em suma, uma interpretação dessas situações à luz da lei interpretativa.