Xadrez tributário: Novos movimentos no tabuleiro da tributação de incentivos fiscais
Por Bernardo Joanes
Nesse texto poderia haver um preâmbulo falando da situação macroeconômica do ano passado, com crescimento das desconfianças com a política fiscal e a necessidade de aumento de arrecadação como uma justificativa para redução de incentivos fiscais.
Outro prólogo, entretanto, se faz necessário para a compreensão dos movimentos nesse tabuleiro de xadrez. Uma linha do tempo, para ser exato.
Em 2015 o STJ entendeu (no ERESP 1.517.492/PR) que receitas de subvenção oriundas de créditos presumidos não poderiam ser objeto tributação pela União. Simplificando e resumindo: se o Estado perdoou a dívida de um contribuinte, a União não pode querer para si parte dessa arrecadação. É principiológico e constitucional, o pacto federativo impede.
Em 2017 veio do nosso Congresso uma tentativa de terminar com qualquer discussão nesse sentido: a LC 160/16, que estabeleceu que todo incentivo fiscal de ICMS deveria ser considerado subvenção para investimento e, assim sendo, seria excluído da apuração do lucro real.
O mercado reage, contribuintes mudam para o lucro real, aprimoram controles contábeis, passam a fornecer mais informações para a Receita Federal do Brasil, investem em instalar novas unidades de negócio em Estados que fornecem incentivos fiscais mais competitivos.
A Receita também reage. O ano de 2020 começa com consultas dizendo que o valor do crédito presumido concedido era o valor da Receita de Subvenção, e se encerra mudando o tratamento dos créditos estornados, agora adicionados na apuração do IRPJ. Em 2022, ignorando a LC já citada, a orientação aos contribuintes e auditores passa a ser no sentido de que não basta ser incentivo fiscal de ICMS, é preciso observar “a necessidade de que tenham sido concedidos como estímulo à implantação ou expansão de empreendimentos econômicos” (retomando um antigo e inadequado conceito para distinção da subvenção para custeio).
Em 2023, o STJ concluiu o julgamento do Tema Repetitivo 1182 deixando claro que nem todo incentivo fiscal de ICMS deve ser excluído da apuração do IRPJ/CSLL, mas ratificando sua posição anterior de que créditos presumidos não devem ser tributados.
O Governo reage. 2024 começa com a revogação da lei 12.973/14 a partir da medida provisória 1.185/23, convertida na lei 14.789/23. Toda a subvenção é tributada, e aquele incentivo utilizado como instalação ou expansão gera créditos fiscais (em valores inferiores e com diversas limitações).
Mas o leitor mais atento pode se perguntar: toda subvenção é tributada? E os créditos presumidos? E o pacto federativo? O ERESP 1.517.492/PR é um precedente de 2015, julgando um caso de 2011, anterior a lei 12.973/14 e com fundamento principiológico e constitucional.
O mercado também estava atento e mais uma vez fez seu movimento. Contribuintes focam investimentos em Estados com créditos presumidos. Os Estados, por sua vez, ajustam suas normas para deixar claro que seus benefícios fiscais sempre tiveram natureza jurídica de crédito presumido. Os governadores querem os empregos gerados pelos investimentos, e podem fazer isso sem perder qualquer centavo de arrecadação e com pouca intriga da oposição.
Com mais contribuintes se valendo de créditos presumidos, é novamente o turno da Receita Federal mover suas peças. Em 26/12/24, o ato declaratório interpretativo 4/24 deixa claro: para correr atrás de arrecadação para o futuro, o Fisco reanalisará o passado. E com novas premissas! Ignorando os conceitos firmados pelo judiciário, para estarmos diante de uma subvenção, além da observância dos preceitos contábeis, “é fundamental que tal valor corresponda ao acréscimo patrimonial”.
Esse racional já havia sido apresentado, quando um comunicado da RFB de três meses defendeu que “o benefício fiscal representa a diferença entre o valor de ICMS que o contribuinte recolheria na sistemática da não cumulatividade e o valor que ele efetivamente recolheu por aderir ao regime especial.”
A construção sofismática da fiscalização merece análise cuidadosa. O contribuinte que fala com fluência a língua do ICMS sabe que, por vezes, incentivos fiscais que combinam diferimento e crédito presumido evitam o acúmulo de saldo credor do imposto estadual. Nesse cenário, se as operações de saída forem analisadas de forma isolada, ignorando o imposto pago quando de nacionalização dos bens, por exemplo, o Fisco chegará à equivocada conclusão de que não há subvenção, uma vez que não pagar nada (por conta do saldo credor) é melhor do que pagar um valor subtraído de crédito presumido.
Mesmo o contribuinte que é fluente em negócio, ainda que não seja em Direito Tributário, consegue construir que a análise pretendida pela fiscalização não funciona do ponto de vista econômico. Isso porque, para comparar o ICMS pago com incentivo e o ICMS pago sem incentivo, a Receita Federal estaria ignorando que o preço do produto poderia ser diferente sem a desoneração.
Voltando à análise do tabuleiro, o movimento em resposta da Receita Federal é ousado. Conta com a inconstância e morosidade do judiciário e confia na sua própria astúcia para revisar a apuração de um tributo que não é de sua competência (vocábulo que pode ser lido, ou não, no sentido jurídico da palavra).
Esse ainda é um jogo em que não é possível prever o vencedor. Ao longo de 2025 já temos um próximo movimento previsto: a reabertura da controvérsia 576, onde o STJ reavaliará a tributação das subvenções. Independentemente do resultado, é a segurança jurídica dos contribuintes que está em xeque. Se a lógica e a melhor técnica prevalecerem, não há de ser xeque-mate.
Bernardo Joanes
Sócio de Rennó Penteado Sampaio Advogados. Especialista em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas e Especialista em Gestão de Negócios pela COPPEAD-UFRJ