Quando vamos regular a corrupção privada?
Ao passo que o combate à corrupção no setor público é ponto pacífico na sociedade brasileira, há algum tempo se discute em diversos fóruns e esferas a regulamentação contra a corrupção privada no Brasil, hoje sem tipificação. Muitas têm sido as iniciativas nacionais neste sentido, mas ainda estamos atrás de várias regulações internacionais. Não à toa, o Brasil perdeu dois pontos no Índice de Percepção da Corrupção 2018 e ocupa o 105º lugar entre 180 nações.
Nos últimos anos, projetos como o do novo Código Penal Brasileiro propõem a tipificação da conduta de “exigir, solicitar, aceitar ou receber vantagem indevida, como representante de empresa ou instituição privada, para favorecer a si ou a terceiros, direta ou indiretamente, ou aceitar promessa de vantagem indevida, a fim de realizar ou omitir ato inerente às suas atribuições”, classificada “corrupção entre particulares”. O projeto (PLS 236, de 2012) tramita em conjunto com propostas semelhantes da Câmara e está em vias de chegar a plenário.
Outro anteprojeto de lei, da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (Enccla) – rede de entidades públicas e privadas criada em 2003 pelo Ministério da Justiça -, prevê a criminalização da corrupção privada no Brasil. Os objetivos deste anteprojeto são proteger a concorrência e o patrimônio empresarial e garantir lealdade nas relações de trabalho. Porém, o texto aguarda tramitação legislativa.
Também estão em curso projetos de lei como o PL 455/2016, do Senado, oriundo da CPI do Futebol, que investigou contratos da CBF; e o PL 2452/2015, de autoria da CPI da Máfia das Órteses e Próteses da Câmara dos Deputados. Já o PL 4850/2016, resultante das “Dez Medidas Contra a Corrupção” propostas pelo Ministério Público Federal, traz instrumentos importantes para a prevenção à corrupção privada, tais como a criminalização do enriquecimento ilícito e o combate à lavagem de dinheiro.
Lançadas no final do ano passado pela Transparência Internacional, a FGV e organizações da sociedade civil, as “Novas Medidas contra a Corrupção” reuniram propostas objetivas para a criminalização da corrupção privada, responsabilizando também indivíduos, não só pessoas jurídicas, pela prática; bem como proposições de incentivo ao compliance, para que empresas estabeleçam programas de integridade com o intuito de prevenir corrupção. De acordo com o pacote, a adoção de um esquema efetivo de compliance serviria de atenuante na análise da pena a ser aplicada à pessoa jurídica, o que se deve ao entendimento de que a corrupção privada gera graves efeitos para toda a economia, prejudica a livre concorrência e ofende os direitos do consumidor.
Não se pode deixar de lembrar que, assim que lançadas, estas medidas foram apontadas como ponto de partida e base da gestão de Sergio Moro no Ministério da Justiça e da Segurança Pública. No entanto, ainda que o Projeto de Lei Anticrime de Moro traga pontos que podem colaborar de forma relevante para o combate à corrupção no setor público, como os acordos criminais e a introdução da figura do informante, não houve a esperada regulamentação da corrupção privada. O ministro explicou que o governo optou pelo fatiamento das propostas e que outros pontos serão apresentados como projeto de lei complementar. Seja como for, espera-se um esforço das autoridades para que as matérias faltantes, a corrupção privada entre elas, sejam encaminhadas o quanto antes.
Em países como Estados Unidos, Alemanha, França e Reino Unido, previsões normativas criminalizam a corrupção privada. Nos EUA, o Foreign Corrupt Practices Act (FCPA) fixa penas de até 20 anos e multa de até US$ 25 milhões para violações de books and records. No Reino Unido, o UK Bribery Act prevê punição de até dez anos e multa para quem oferece ou aceita vantagem indevida com o intuito de agir de forma contrária a seu cargo, função e/ou empresa, o chamado private-to-private bribery. Os efeitos destas leis vão muito além das fronteiras de seus países de origem, como pudemos verificar com as multas aplicadas a empresas brasileiras. A Petrobras, por exemplo, fez acordo em 2018 para o pagamento de US$ 1,78 bilhão por transgressão ao FCPA, a maior negociação da história.
Ainda no âmbito internacional, a Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção, em que o Brasil é signatário, dispõe que os Estados Partes deveriam adotar medidas de combate à corrupção privada em seus ordenamentos, principalmente em casos ligados a atividades econômicas, financeiras ou comerciais.
Cabe frisar que a atipicidade da corrupção privada no Brasil repercute sobre a amplitude da cooperação internacional passiva que estaríamos aptos a prestar a países em que a conduta já foi tipificada. Isto quer dizer que, sem a tipificação no Brasil, não seria possível, no âmbito penal, cooperar com países que investigam brasileiros por corrupção privada. Neste caso, o investigado que estivesse em solo brasileiro não poderia ser extraditado, tampouco haveria meios de os países envolvidos cooperarem criminalmente.
Qualquer que seja a esfera em questão, a criação de legislação específica para as hipóteses de corrupção no setor privado trará importantes impactos – como já dito, pode ser destacada a proteção à concorrência, ao patrimônio e às relações comerciais, que seria fundamental para preservar a ordem econômica e geraria efeitos ao mercado, aos consumidores e, de forma mais ampla, ao interesse público. Para além do universo empresarial, não restam dúvidas de que o combate à corrupção privada fará bem ao Brasil.
Fernanda Barroso é diretora-geral da Kroll no Brasil, com experiência em investigações relacionadas a fraudes financeiras e corrupção