O contencioso tributário lilliputiano
Por Karen Belém Dias
Desde os primórdios das relações humanas organizadas sob a égide de entes politicamente autônomos, a tributação figurou como eixo central das disputas de poder. A necessidade de custeio das funções estatais sempre se entrelaçou com o desejo de domínio sobre os sujeitos passivos, estabelecendo uma complexa rede de conflitos e sobreposições normativas. Da pólis ateniense ao feudalismo europeu, do modelo federativo norte-americano ao intricado arranjo brasileiro, a história revela um permanente embate pelo controle da competência tributária. Não à toa, a guerra fiscal, a sobreposição de tributos e a profusão de normas interpretativas tornaram-se elementos estruturantes dos sistemas fiscais modernos, culminando no verdadeiro “carnaval tributário” na perspectiva de Becker.

A evolução do Direito Tributário brasileiro se formou por diferentes tradições jurídicas. A perspectiva constitucional, inspirada no modelo norte-americano, enfatizou a tutela dos direitos individuais, enquanto a vertente administrativa, influenciada pela tradição europeia continental, priorizou a supremacia do interesse público. Essa dicotomia teórica gerou um modelo normativo singular, que busca equilibrar a proteção do patrimônio privado com a necessidade de sustentação da atividade estatal [2].
No século 21, a EC nº 132/2023 enfrentou o tema da competência tributária pela via da simplificação, positivando-a como princípio constitucional. Entretanto, a dualidade do IVA — desdobrado em IBS e CBS — revelou a dificuldade de harmonização entre os entes federativos. A resistência ao compartilhamento de competências reflete um fenômeno mais profundo, que remete ao ethos competitivo dos agentes estatais.
Como em “As Viagens de Gulliver”, de Jonathan Swift, o protagonista Lemuel Gulliver percorre terras fictícias que satirizam a sociedade e a política do século 18. Entre elas, destaca-se Lilliput, onde pequenos seres travam guerras por diferenças triviais, e Houyhnhnms, um reino utópico governado por cavalos racionais, em contraste com os brutais e irracionais Yahoos, representações da humanidade em seu estado mais primitivo. A crítica de Swift expõe a irracionalidade das disputas humanas, uma reflexão que ressoa no contencioso tributário brasileiro.
No Brasil, a fragmentação normativa e os incessantes conflitos entre contribuintes e Fisco — e entre os próprios entes tributantes — criam um ambiente litigioso e disfuncional. Como os lilliputianos que guerreiam sobre qual extremidade de um ovo deve ser quebrada, entes federados travam embates intermináveis sobre competências tributárias, bases de cálculo e incidências. Em vez de um sistema racional e coordenado, semelhante ao ideal de Houyhnhnms, o Brasil perpetua um modelo tributário caótico, no qual a sobreposição de normas, a insegurança jurídica e a busca incessante por arrecadação transformam o contencioso tributário em um labirinto de disputas intermináveis.

Utopia
Se a Constituição de 1988 — elaborada por estudiosos em uma época de um novo patriotismo e estudos do equilíbrio federativo — já enfrentava os desafios da tributação concorrente, a reforma tributária aprovada em 2023 revela que os problemas não foram superados — apenas metamorfoseados em novas disputas por protagonismo arrecadatório. O que se observa é a ressignificação da guerra fiscal em um novo plano de embate, onde a luta não é apenas por bases tributáveis, mas pelo poder regulador de cada ente. Assim, ao invés de convergirmos para um modelo funcionalmente coordenado, reproduzimos a lógica hobbesiana da competição, na qual cada ente tributante luta para preservar sua fatia de domínio normativo.
Nesse cenário, os conceitos de competência e integração assumem um papel paradoxal. A EC nº 132/2023 impõe a necessidade de normas comuns para CBS e IBS, mas preserva instâncias separadas para solucionar conflitos, desafiando a própria premissa da reforma. A distinção entre harmonização e integração, crucial para compreender a intenção do legislador constituinte, demonstra que a mera unificação conceitual não basta para solucionar as disputas que emergem no plano da aplicação normativa.
Se Jonathan Swift nos propõe uma reflexão sobre a irracionalidade do homem em suas disputas fratricidas, o sistema tributário brasileiro atual e a problemática da competência tributária dos textos dos Projetos de Lei nº 2.483/2022 e nº 2.488/2022 parecem confirmar sua tese. Enquanto persistir a lógica da fragmentação, com entes tributantes atuando como polos de poder isolados, a busca por uma tributação eficiente e equitativa permanecerá tão utópica quanto a sociedade dos Houyhnhnms.
[1] Sousa, R. G. de. (1951). Aliomar Baleeiro – Limitações constitucionais ao poder de tribular. Revista De Direito Administrativo, 26, 444–446. https://doi.org/10.12660/rda.v26.1951.12234
[2] ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973