Os precatórios e a Emenda 62
Desde que entrou em vigor em dezembro de 2009, a Emenda Constitucional nº 62, que instituiu novo regime para pagamento de precatórios (basicamente, em 15 anos), foi objeto de pouco alarde nos meios jurídicos e empresariais. Inacreditável, tanto do ponto de vista do impacto no recebimento dos créditos em face dos entes públicos, quanto do ângulo da moralidade. Os precatórios expedidos antes da referida emenda e todos aqueles expedidos durante a vigência do regime por ela implantado, ou seja, durante os 15 anos contados a partir de dezembro de 2009, estão incluídos nas regras, que permitem, uma vez mais, um longo prazo para pagamento dos débitos do poder público decorrentes de decisões judiciais.
É verdade que existem ações no Supremo Tribunal Federal (STF) discutindo a constitucionalidade da própria emenda. Todas elas agrupadas na ação direta de inconstitucionalidade nº 4.357, de relatoria, inicialmente, do ministro Ayres Britto, que julgou a ação parcialmente procedente em outubro de 2011. Atualmente, a questão está em vias de ser julgada, tudo indicando que o voto do ministro Luiz Fux também concluirá pela inconstitucionalidade, ao menos em parte, da emenda. Porém, a despeito da existência desse questionamento perante nossa mais alta Corte, não se viu, nem se vê, maiores debates dedicados ao combate, ou mesmo ao esclarecimento, dos efeitos da emenda constitucional.
Infelizmente, fora essa ação direta de inconstitucionalidade, parece haver um conformismo geral com a situação, que vem de tempos atrás, de inadimplência do Poder Público. Se uma empresa que contrata com o Estado e lhe presta um serviço ou fornece produtos tiver que recorrer à Justiça para receber o que lhe é devido, além de ter que se sujeitar ao obrigatório regime de pagamento por meio de precatório, tem que se contentar em aguardar o pagamento por longos anos, ingressando em intermináveis listas de espera, sem saber ao certo quando vai receber.
É imprescindível uma rápida e definitiva decisão sobre a Emenda 62
A Emenda 62 veio sob o fundamento de viabilizar o pagamento dos infindáveis precatórios que os entes públicos nunca atenderam corretamente nas épocas próprias. O acúmulo das dívidas foi tanto que Estados e municípios de grande arrecadação – como o Estado e a cidade de São Paulo – tornaram-se desacreditados. Em muitas oportunidades, os próprios governantes chegaram a declarar que os precatórios seriam impagáveis.
Mas a Emenda 62, como outras medidas anteriores (seja o parcelamento de 1988, que adveio juntamente com a vigência da atual Constituição Federal, seja o parcelamento da Emenda 30, de 2000 – esta, aliás, com efeitos suspensos depois de quase 10 anos de vigência, o que seria assunto para outro artigo -, além de “constitucionalizar” o calote, investiu os tribunais de mais uma infindável atribuição: organizar os precatórios em listas de ordem cronológica, prioridade e de crescimento, e realizar os pagamentos de acordo com os depósitos mensais ou anuais feitos pelos devedores em contas administradas pelo mesmo tribunal.
E mesmo havendo uma ação que discute a constitucionalidade da emenda, um grave problema se instaura com a demora no julgamento da demanda: e se for declarada a inconstitucionalidade da Emenda 62? Como ficam os pagamentos já realizados sob a égide daquela norma? E todo o trabalho desenvolvido pelos tribunais, que tiveram que desenvolver, aparelhar e instalar novos setores em sua administração para atender às obrigações impostas pela Emenda 62, entre elas, o próprio controle das obrigações dos devedores do poder público?
De fato, muitos precatórios vêm sendo pagos sob a vigência da Emenda 62, mas o sistema ainda é muito deficiente, e padece da precariedade de informações e de medidas efetivas para constranger os devedores que não cumprem, sequer, o parcelamento com que os beneficiou a Emenda 62. Porém, sob o prisma mesmo da moralidade, que é um princípio constitucional fundamental de nosso ordenamento, dirigido especialmente ao poder público, pode-se afirmar que a emenda institucionalizou o “calote”.
Nosso Supremo Tribunal Federal tem dado mostras mais do que claras do brilhante trabalho que vem fazendo na guarda de nossa Constituição, mas a questão prática que se impõe é a do descompasso entre a Justiça concedida e seus efeitos práticos.
Neste caso, se, de pronto e liminarmente, o Supremo Tribunal Federal houvesse determinado a suspensão dos efeitos da emenda, impedindo, assim, que os tribunais se aparelhassem para dar a ela efeito prático, o julgamento de procedência da ação direta de inconstitucionalidade não afetaria o funcionamento dos tribunais, nem tornaria inócuo o seu longo trabalho de adequação à nova sistemática. Daí também porque uma rápida e definitiva decisão sobre a constitucionalidade da Emenda 62 faz-se imprescindível.
Porém, a longa demora do julgamento coloca os credores do poder público, sejam eles pessoas físicas ou jurídicas, em verdadeira situação de insegurança, como, aliás, acontece corriqueiramente no cenário nacional, tornando nosso país pouco confiável, e até mesmo atrativo, para os investimentos externos.
Ana Cláudia Teles Silva Bloisi é advogada formada pela PUC-SP e sócia da De Vivo Advocacia
Publicada no Valor Econômico