Nevoeiro Fiscal
O meio acadêmico e o debate sobre políticas macroeconômicas têm mostrado anormal agitação nas últimas semanas. O foco das atenções tem sido um por vezes agressivo revisionismo das lições extraídas de trabalhos dos professores de Harvard Ken Rogoff e Carmen Reinhart, que mostraram a correlação inversa entre taxas de crescimento e dívida pública, em especial quando a última ultrapassa certo patamar.
O revisionismo apenas dá uma roupagem acadêmica um pouco melhor para o que “as ruas”, e o instinto de sobrevivência dos políticos já sugeriam, a saber que a Europa está cansada de austeridade, e que vai provavelmente espaçar mais no tempo seus programas de ajuste fiscal.
Isto não significa dizer que a austeridade foi abandonada, mas sim que sua implementação será mais gradual, de forma a contribuir para a gradativa recuperação da atividade econômica e, em especial, do emprego, que chega em alguns casos a níveis alarmantes – 27% na Espanha, 17% em Portugal e 12% na Itália.
O superávit primário esperado tem encolhido e há grande incerteza sobre seu comportamento futuro
Nesse meio tempo, a política fiscal brasileira parece dar uma guinada em direção expansionista. Isto ocorre apesar do desemprego estar próximo da mínima histórica, o que contribuiu para levar o Banco Central a elevar a taxa de juros para conter, e não incentivar, a demanda. De fato, a julgar por declarações recentes de autoridades, a coordenação das políticas monetária e fiscal, apresentada como uma grande conquista deste governo, foi abandonada.
Não apenas a política fiscal brasileira adotou viés expansionista, mas tornou-se mais opaca. Se antes o superávit primário era calibrado de forma a manter a razão dívida/PIB em trajetória descendente, agora será determinado de acordo com a avaliação das autoridades sobre o ritmo da atividade econômica, ou seja, a política fiscal será doravante mais um instrumento de gestão de demanda agregada a ser empregado de forma discricionária.
Nesse contexto, as expectativas de mercado (segundo as séries disponibilizadas pelo Banco Central) sobre o superávit primário do setor público consolidado encontram-se em 2% do PIB, para 2013 e 2014. Esses números são provavelmente otimistas pois projeções mais realistas, tendo em vista as desonerações tributárias anunciadas e outras que podem ocorrer, bem como os ciclos políticos em distintas esferas governamentais, apontam para algo como 1,8% em 2013 e cerca de 1% no ano eleitoral de 2014 – embora tais projeções estejam cercadas por muita incerteza.
Uma das características da política discricionária é o aumento da incerteza. Esse resultado de livro-texto fica evidenciado de forma bem nítida se considerarmos o coeficiente de variação das projeções de mercado para o superávit primário, também disponíveis no site do BC. Esse coeficiente mede a dispersão das expectativas sobre o superávit primário em torno de sua média. Quanto maior incerteza, maior será a dispersão e, consequentemente, o coeficiente de variação.
Se considerarmos apenas os últimos anos, em 2011 o coeficiente de variação das expectativas sobre o superávit primário no ano corrente e no seguinte foi em média 7,13 e 11,31. Em 2012 a situação pouco se alterou, com os coeficientes em 7,72 e 9,54. Já em 2013, a dispersão aumentou fortemente, para 21,71 e 26,94 – a conclusão é a mesma se compararmos os dados dos primeiros meses de 2013 com igual período de 2011 e 2012. Em suma, não apenas o superávit primário esperado tem encolhido, mas há também grande incerteza sobre seu comportamento futuro.
Além da mudança na orientação da política fiscal, há também em curso certo trabalho de desconstrução institucional. O governo parece inclinado a conceder estímulos para o maior endividamento estadual, desde que para financiar investimentos, bem como se autoconcedeu permissão para abater volumes crescentes (cerca de R$ 132 bilhões em 2013 e 2014, cerca de 1,4% do PIB ao ano) de sua meta de primário.
O histórico fiscal de nossa federação inspira preocupação, visto que o descalabro nas esferas sub-nacionais foi um dos principais responsáveis pelo desarranjo fiscal que levou à hiperinflação. É possível que os estados tenham aprendido a lição. Mas continua sendo verdade que, enquanto cabe ao governo federal zelar pelo equilíbrio macroeconômico, Estados e municípios em geral estão focados apenas em prover serviços à população, com graus variáveis de eficácia, e podem adotar atitude predatória perante os recursos federais.
As prováveis consequências das mudanças na política fiscal são várias. No curto prazo, a princípio, aumenta a dificuldade enfrentada pelo Banco Central para conter as expectativas de inflação e o próprio processo inflacionário. Além disso, maior incerteza geralmente se traduz em aumento de prêmios de risco e taxas de juros de mercado mais elevadas, todo o resto sendo constante.
É plausível, também, que a menor visibilidade da trajetória fiscal acabe afetando a boa vontade das agências de classificação de risco, interrompendo o processo de “upgrades” sequenciais que teve início em 2004 – sob a gestão do ministro Palocci.
Cabe registrar, finalmente, que como as desonerações não têm sido acompanhadas por cortes de gastos, é possível que no futuro o governo resolva voltar a elevar impostos, de forma a sustentar o dispêndio sem eliminar por completo o superávit primário. Seria politicamente custoso e, consequentemente, improvável, que a elevação dos impostos recaísse sobre os itens recentemente desonerados – a linha de menor resistência política seria aumentar o imposto de renda, instituir imposto sobre patrimônio ou, talvez, aumentar o IOF para elevar o custo das viagens ao exterior – mas só depois das eleições, é claro.
Mário Mesquita é economista e sócio do banco Brasil Plural. Anteriormente foi diretor de Estudos Especiais e depois diretor de Política Econômica do Banco Central do Brasil, 2006-2010