A guerra das narrativas no imposto seletivo
Por José Maria Arruda de Andrade
O imposto seletivo brasileiro, criado na reforma tributária, incidirá sobre bens prejudiciais à saúde e ao meio ambiente. O projeto de lei complementar que o implantará tem gerado intensos debates. Imposições tributárias muito específicas tendem a criar ganhadores e perdedores, levantando críticas sobre a seleção dos produtos incluídos e a forma de sua cobrança.
No caso das bebidas açucaradas, questiona-se a inclusão apenas de refrigerantes, chás e refrescos líquidos. Se o problema é o do excesso de peso, o fator nocivo à saúde seria o consumo excessivo de açúcar, carboidrato e gordura em geral. A forma atual, de tão artificial, permitirá que refrescos em pó não sofram a sua incidência enquanto os líquidos, sim, ou seja, penalizando apenas a água potável. Inclua-se nessas idiossincrasias a exclusão de diversas bebidas e produtos açucarados, criando-se uma falsa dieta milagrosa, a impactar menos de 2% das calorias consumidas por brasileiros (dados do IBGE), em claro enviesamento de questionável eficiência.
No caso da extração de minérios, a seleção de apenas três dos principais deles revela a sua finalidade arrecadatória, a compensar a quase extinção do IPI, além de estar dissociado de uma clara política ambiental.
Já o setor de bebidas alcoólicas se destaca pela disputa que envolve os seus segmentos. A tributação será aplicada por meio de duas técnicas: ad valorem (valor do produto) e ad rem (valores monetários em função de medidas específicas).
O atual projeto, alterado e aprovado pela Câmara dos Deputados e, em tramitação na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania propõe que a alíquota ad rem considere o teor alcoólico multiplicado pelo volume. Quanto à tributação ad valorem, a partir de uma alteração incluída de última hora, prevê-se que as alíquotas poderão ser diferenciadas por categoria de produto e progressivas em virtude do teor alcoólico.
De forma geral, uma tributação proporcional (alíquota única) sobre o valor é menos intervencionista e mais transparente, favorecendo a necessária previsibilidade de arrecadação pelo governo Federal. Em contrapartida, a técnica progressiva pode gerar incentivos cruzados indevidos entre os produtos. Trata-se de técnica que funcionaria melhor em países cujo imposto tenha sido criado como instrumento de alteração de formulação, não fazendo sentido para bebidas alcoólicas.
A nossa CF determina que o imposto seletivo decorra da prejudicialidade das bebidas alcoólicas à saúde, de forma que, ou bem se adota uma tributação linear geral, ou bem se assume apenas na técnica ad rem uma tributação aplicada por litro de puro álcool, tal como prevista na tributação específica, parte da tributação híbrida do seletivo de bebidas alcoólicas proposta pelo PLP 68/24.
A forma mais condizente com esse imposto seria um valor em reais por cada mililitro de álcool puro, de forma que a apuração dependerá da multiplicação desse valor pelo volume do recipiente e pelo teor alcoólico da bebida.
A conjugação de uma alíquota ad valorem que considere apenas um percentual sobre o valor do bem, a garantir a ausência de favorecimento concorrencial e o subsídio cruzado ao consumo de cerveja no Brasil, e de uma alíquota específica por álcool puro presente em cada recipiente cria um sistema transparente de apuração, quantificando os dois elementos relevantes: valor do produto e álcool puro, o único componente da fórmula que, se consumido irresponsavelmente, é prejudicial.
A narrativa que transforma o consumo de cerveja em experiência lúdica e familiar contribui para um ganho setorial distorcido, desconsiderando os riscos à saúde, como alerta o Conselho Nacional de Saúde. Tributar pelo rótulo é comprar uma ideia pelo seu valor de face, ignorando que a única prejudicialidade do produto está relacionada à presença de álcool no organismo e, quando se trata de excesso, não se discute marca ou tipo de bebida.
José Maria Arruda de Andrade
Doutor em Direito Econômico e Financeiro, Graduação em Direito pela Universidade de São Paulo, com especialização na Área de Direito Político, Administrativo e Financeiro. Pós-doutorado em Economia pela Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV) em 2021-2022. Foi pesquisador visitante no Max-Planck-Institut de Inovação e Concorrência (Munique, Alemanha em 2009-2010 e em 01/2011).