Por JOSÉ FERNANDO SIMÃO
Uma pequena história…
Com frequência, por força da generosidade das instituições educacionais, sou convidado para conferências e aulas. Mesmo sendo aulas em São Paulo, onde resido, é comum as instituições contratarem taxistas para a ida de minha casa ao local da palestra e posteriormente para minha volta.
Esses transportadores podem ser pessoa física ou mesmo jurídica. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), por exemplo, tem convênio com empresas de transporte.
Imaginemos que um motorista, ao transportar o conferencista, por culpa sua, bate o carro e gera danos ao transportado. No meu caso, após a batida, o carro ficou avariado e eu fiquei exatamente quatro horas esperando outro carro, durante a madrugada, em uma rodovia estadual.
Poderia eu cobrar da OAB ou da faculdade que me convidou indenização pelo fato de o motorista ter, culposamente, batido o carro?
Direito e segurança jurídica
O Direito sempre foi tido como uma ferramenta apta a dirimir controvérsias e garantir a paz social. É um corolário do Direito a segurança jurídica.
Nas lições de Luís Roberto Barroso, uma manifestação do princípio da segurança jurídica que se desenvolveu na doutrina e na jurisprudência recentes foi a proteção da confiança, destinada a tutelar expectativas legítimas e a preservar efeitos de atos inválidos, presentes determinadas circunstâncias (Curso de Direito Constitucional, 1ª ed., São Paulo, Saraiva, 2009).
Segurança jurídica se traduz em um mínimo de previsibilidade da atividade jurisdicional. Aliás, é necessário que o sistema seja operável para que seja compreendido. E sendo compreendido, aplica-se a lei correta, o que garante segurança. Assim, o raciocínio fecha.
E o que seria a operabilidade? A resposta a essa indagação se inicia a partir das palavras do próprio presidente da Comissão Elaboradora do Projeto de Código Civil. Preconizava o professor Miguel Reale que um dos pilares, ou nortes interpretativos da atual codificação, é a operabilidade. A operabilidade, absolutamente imprescindível a qualquer diploma, significa o estabelecimento de soluções normativas de modo a facilitar a interpretação e a aplicação do direito, eliminando-se dúvidas que haviam persistido na aplicação do Código Civil anterior.
Exemplo máximo de operabilidade é a distinção entre prescrição e decadência. Enquanto o Código Civil de 1916 não distingui os institutos, Súmulas nasceram com erro de categoria e danos às partes. Bom exemplo é a súmula 494 do Supremo Tribunal Federal segundo a qual “a ação para anular venda de ascendente a descendente, sem consentimento dos demais, prescreve em 20 anos, contados da data do ato”. O prazo para se anular a venda é evidentemente decadencial, logo incorreta a utilização do verbo “prescreve”.
Da mesma forma, em Direito das Sucessões, tivemos um “caos decisório” por conta de uma interpretação contra legem do ano de 2007 (REsp 992.749). Trata-se de um erro de interpretação do art. 1.829, I do Código Civil.
A decisão afastou da sucessão o cônjuge casado por separação convencional de bens, atribuindo 100% da herança aos descendentes. Essa decisão gerou danos profundos ao cônjuge pois (i) transitou em julgado e cristalizou um afastamento equivocado do cônjuge da herança; (ii) gerou diversas decisões igualmente equivocadas nos Tribunais Estaduais; e (iii) tratou pessoas iguais de maneira desigual, pois quando em 2015 a Segunda Sessão do Superior Tribunal de Justiça superou a orientação equivocada, outros cônjuges em situação idêntica foram admitidos como herdeiros com concorrência com os descendentes. Em suma, como explicar ao cidadão que em 2007 foi preterido da herança que todos os demais cônjuges viúvos em igual situação foram, a partir de 2015, beneficiados pelo mesmo Tribunal e pela mesma 3ª Turma?
A responsabilidade de quem contrata o transportador
O Código Civil assim dispõe: “Art. 734. O transportador responde pelos danos causados às pessoas transportadas e suas bagagens, salvo motivo de força maior, sendo nula qualquer cláusula excludente da responsabilidade”.
Com a responsabilidade civil o tratamento não pode ser diferente. O tratamento dos danos e da indenização deve seguir uma lógica de operabilidade que, em última análise, tem por resultado a segurança jurídica.
Atualmente, há nítida insegurança jurídica quanto à responsabilização por acidentes aéreos, especialmente na aviação particular, que reside na dúvida de aplicação entre a responsabilidade objetiva e a responsabilidade subjetiva.
A ausência da segurança jurídica gera imprevisibilidade nas decisões judiciais, e um ambiente de insegurança jurídica não é saudável para o país, mas ainda é frequente em muitas hipóteses, inclusive na responsabilização por acidentes aéreos, especialmente na aviação privada. Sendo assim, um dos pontos principais da segurança jurídica é a estabilidade.
Citemos dois casos concretos. Ambos tratam de aviação civil privada. É uma das formas de transporte que mais cresce no Brasil[1].
No caso de transporte que vitimou o governador Eduardo Campos[2], reconheceu-se que o PSB não era operador da aeronave, mas sim um simples usuário do transporte aéreo e, portanto, não contribuiu para o acidente. Diz o julgado que “o recorrente PSB deve ser havido como mero usuário do transporte aéreo, não exibindo, em decorrência, legitimidade para compor o polo passivo da demanda”.
A 4ª Turma do STJ (REsp 1.785.404) afirmou não haver dúvida de que o papel desempenhado pelo PSB era de usuário da aeronave: “O partido recorrido, juridicamente, nada mais era que o contratante do serviço aéreo, ainda que dito contrato não tenha sido oneroso.”
Por outro lado, em decorrência do mesmo acidente aéreo, entendeu-se em sentido contrário, e o PSB foi condenado, de forma solidária, a indenizar moradores de casas atingidas pelo avião[3]. Segundo o relator, tendo em vista que o PSB fazia uso exclusivo do bem, deve ser considerado explorador da aeronave, nos termos da legislação, com a consequente aplicação do disposto no artigo 927, parágrafo único, do Código Civil. O entendimento do magistrado foi de que a responsabilidade era objetiva, aplicando-se a teoria do risco da atividade.
As decisões divergentes reforçam um ambiente de incerteza, intranquilidade e instabilidade. A segunda decisão equivoca-se na premissa e no fundamento. A OAB, quando contrata um táxi, não exerce certamente uma atividade de risco. A empresa, quando contrato um avião ou helicóptero para transportar um palestrante, não exerce atividade de risco.
O que seria risco então? Segundo Menezes Cordeiro, “a ligação entre o riscus (cofre) e os perigos ou eventualidades em que ele poderia incorrer levou a que estes fossem designados por aquele, num fenômeno de contágio semântico conhecido, em linguística, como metonímia”[4]. Sendo assim, em termos genéricos, o risco exprimia a vertente negativa da álea: a do perigo (periculum) de um mal, ou seja, a probabilidade de diminuição, numa situação previamente considerada[5].
Analisemos o risco, agora, na atividade de transporte aéreo. O transporte aéreo é reconhecidamente uma das mais seguras formas de transporte. Vejamos as pesquisas sobre o tema:
Andar de avião é mais seguro que dirigir um carro[6]
“De acordo com um estudo da Universidade Harvard, um em cada 1,2 milhão de voos pode sofrer um acidente – com uma em 11 milhões de chances de ser fatal. Em comparação, as chances de um acidente de carro são 200 mil vezes maiores, chegando a 1 em 5 mil”.
Assim, invocar o transporte aéreo como atividade de risco é uma distorção do conceito de risco. É aplicação indevida do parágrafo único do artigo 927 do Código Civil que transforma a exceção em regra, ou seja, a responsabilidade claramente subjetiva (arts. 186 e 927, caput) passa a ser objetiva.
Uma segunda nota. O fato de muitos contratos afirmarem que “o contratante se responsabiliza pelo transporte do conferencista ou palestrante” não implica responsabilidade no sentido jurídico. É responsável pelo pagamento da despesa com transporte. Implica dizer que o palestrante nada gastará com o transporte.
É o uso popular, atécnico da palavra responsabilidade. A linguagem comum não precisa ser técnica. Quando eu estacionava na Escola da Advocacia, não pagava o estacionamento pois lá dava aulas. A placa dizia: “O estacionamento é sem ônus ao docente”. O que quer dizer ônus em sentido popular? Que era gratuito, sem pagamento. É conceito que muito se distingue de ônus em sentido jurídico.
Breve nota conclusiva
Em suma, não interessa ao sistema uma solução justa, mas insegura. Também, o mesmo sistema repudia a ideia de uma solução injusta, mas segura. É por isso que a única conclusão que se pode chegar é a seguinte: aquele que contratou um transportador para transportar um terceiro, somente responde pelos danos causados ao transportado se ele agiu com dolo ou culpa. Responde ainda de maneira subjetiva. A responsabilidade é, em regra, única e exclusiva do transportador e não de quem o contrata.
[1] Os dados da aviação civil geral demonstram a afirmação “O anuário do transporte aéreo de 2022, divulgado nesta terça-feira (8) pela Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), mostrou que no ano passado foram realizados cerca de 830 mil voos no país, representando um aumento de 39% em relação a 2021” https://www.cnnbrasil.com.br/economia/numero-de-voos-cresce-40-em-um-ano-no-brasil-diz-anac/#:~:text=O%20anu%C3%A1rio%20do%20transporte%20a%C3%A9reo,39%25%20em%20rela%C3%A7%C3%A3o%20a%202021.
[2] 3ª Câmara de Direito Privado do TJSP, processo 1030267-76.2015.8.26.0562.
[3]10ª Câmara de Direito Privado do TJSP, processo 1025383-04.2015.8.26.0562.
[4] MENEZES CORDEIRO, António. Tratado de Direito Civil: Direito das Obrigações. Garantias. vol. 10. Coimbra: Almedina, 2017. p. 31
[5] Sobre o tema do risco: Gomide, Alexandre. Risco Contratual e sua perspectiva na incorporação imobiliária.
[6] https://gizmodo.uol.com.br/medo-de-voar-saiba-chance-de-um-aviao-cair-e-companhias-mais-seguras/#:~:text=Andar%20de%20avi%C3%A3o%20%C3%A9%20mais%20seguro%20que%20dirigir%20um%20carro&text=De%20acordo%20com%20um%20estudo,a%20uma%20em%205%20mil.