Autor da ideia de SAs simplificadas, Warde enxerga momento econômico ímpar
De tempos em tempos surgem na advocacia pessoas que reinventam o ofício. Em geral, pessoas de grande capacidade de articulação e que têm em comum a característica de não se limitar às fronteiras do escritório. Eles interagem com o Executivo, com o Legislativo, com a sociedade e com Judiciário, muito além das causas que patrocinam.
Walfrido Warde, um dos inovadores da profissão, teve a boa ideia de propor um regime jurídico para as empresas brasileiras, o das sociedades anônimas simplificadas — que acaba de virar realidade. O presidente Jair Bolsonaro sancionou na semana passada a Lei Complementar 182, que trata principalmente do estímulo ao surgimento e manutenção de startups — a chave do futuro no que toca à inovação.
ConJur — Doutor Walfrido, como nasceu a ideia de criar esse regime jurídico no Brasil?
Walfrido Warde — Em 2012, eu e o advogado Rodrigo Monteiro de Castro conversamos que o Brasil não tinha o que a doutrina chama de sociedade hibrida, ou seja, uma que tenha as características de uma de capitais e, ao mesmo tempo, as de uma sociedade contratual, com pessoalidade entre sócios. Uma sociedade que seja capaz, de certa forma, organizar uma atividade empresarial entre pessoas que se conhecem, que têm uma química pessoal e, ao mesmo tempo, capitar dinheiro no mercado de capitais e outras jurisdições. Alguns países têm esse modelo societário desde os anos 1970. E no Brasil precisávamos disso.
Começamos a pensar no anteprojeto de lei. Procuramos o deputado Laercio Oliveira (PP-SE) para ele apresentar o Projeto de Lei 1.284/2012, que levava ao Congresso uma proposta de regime jurídico para aquilo que nós chamamos de sociedade anônima simplificada, que nada mais é do que um regime jurídico dentro da Lei da Sociedade Anônima.
ConJur — O senhor inclusive publicou um livro a esse respeito…
Warde — Isso. Botamos nosso anteprojeto na internet para que as pessoas opinassem. Quase como uma consulta pública. Fizemos artigos em jornais como o Valor Econômico e escrevemos o livro “Regime Especial da Sociedade Anônima Simplificada”, publicado pela Saraiva, com prefácio do doutor Guilherme Afif Domingos, que na época era ministro da presidente Dilma Rousseff (Secretaria de Micro e Pequena Empresa) e que continua muito influente sobre a equipe econômica do ministro Paulo Guedes (Economia). Afif foi um dos principais padrinhos políticos dessa conquista para o Brasil.
ConJur — Pelo que o senhor já nos explicou, esse novo regime vai permitir que empresas de pequenos portes possam capitar recursos na Bolsa. Ou seja, vão entrar no mercado de ações. Eu pergunto: os escritórios de advocacia, um açougue, um jornal, vão poder abrir o capital na Bolsa?
Warde — O que esse regime desde logo faz: simplifica o manejo da sociedade anônima. Por quê? Porque você precisa construir uma sociedade anônima para ir ao mercado de capitais. No Brasil, você não podia fazer isso. Uma sociedade limitada é mais fácil de manejar. O pequeno e médio negócio para constituir uma sociedade anônima tinha que publicar no jornal, precisava ter vários diretores… O manejo era difícil, complexo e caro.
Então o que faz um regime da sociedade anônima simplificada? Primeiro lugar: permite que funcione com apenas um diretor. Que os documentos obrigatórios que a lei manda publicar sejam em meio eletrônico. Permite uma coisa que é importante nas empresas pequenas e médias: a distribuição desigual de dividendos.
Então imaginamos que você, Márcio Chaer, busque o Walfrido Warde pra empreender. O Walfrido tem uma capacidade, um espiritismo em uma determinada área, mas não tem dinheiro. O Walfrido tem 10% das ações e o Márcio, 90%. Todavia você reconhece que o trabalho do Walfrido merece acesso a lucros na ordem de 30%. Então o Márcio tem 90%, mas ganha 70% dos lucros. E o Walfrido tem 10%, mas ganha 30% dos lucros. Isso é fundamental pra sociedade em que o trabalho se conjuga ao capital, por conta dessa pessoalidade ao qual me referia no começo para empreender.
Além disso, o que que faz a lei complementar 182, no seu artigo 16, quando encampa o regime jurídico da sociedade anônima simplificada? Permite agora que a CVM [Comissão de Valores Mobiliários], agora com esse arcabouço legal, possa regular a ação de mercado de acesso. A CVM desde o começo aplaudiu o nosso projeto de lei, mas estava de mão atada. Sem lei não podia fazer a regulamentação do mercado de acesso. E o que é o mercado de acesso? É basicamente aquele segmento de mercado onde empresas de pequeno e médio porte vão fazer a oferta de ações ou de títulos de dividas para o público anônimo em valores pequenos.
Por exemplo: captações de R$ 30, R$ 40, R$ 50, R$ 100 milhões. Isso será acessível. Veja: pela lei complementar pode se encaixar no regime de sociedade anônima simplificada todas as SAs que faturem até R$ 78 milhões. Mas podem participar do acesso todas as SAs que tenham receita bruta de até R$ 500 milhões. Ou seja, isso faz com que se crie um mundo novo. Faz com que essas pequenas e médias empresas não precisem ir ao banco.
Temos um momento único na história do país porque o rentismo estava todo alocado na renda fixa. Com a queda da taxa de juros, o investidor procurou o mercado de ações para obter maiores lucros, rendimentos. As empresas também vão ao mercado capitar recurso para si. É um momento único e estavam fora as pequenas e médias. Agora podem estar inseridas. E como você mesmo disse: claro que pode ser um açougue. Acabamos de ter no mercado de capitais a emissão e oferta pública de uma empresa de depilação.
Obviamente o escritório de advocacia já é mais problemático. Não há dúvidas de que seja uma empresa, mas precisa se organizar sob a forma de sociedade anônima. Não é só um e outro advogado junto lá com seu computador, com seu livro. É uma quantidade enorme de recursos maiores do que de empresas, em setores distintos.
ConJur — Doutor Warde, que impacto pode ter essa belíssima ideia, inovadora, na economia?
Warde — Gigantesco. A gente vive criticando o governo, mas devia elogiar quando acerta. A economia acertou. Fez algo. E não é porque encampou um projeto nosso. Encampou um projeto em que acreditamos e que outras nações já haviam colocado em prática. É fundamental para permitir que as empresas tenham um caminho, que não seja a mortalidade.
Você imagina o seguinte. Uma SA gasta entre R$ 50 e R$ 100 mil em publicação de jornal, papel. Estamos falando de internet. Não faz mais sentido. Ninguém guarda, isso vai para o lixo no minuto seguinte. Ao mesmo tempo, se não sou sociedade anônima, não consigo emitir ações e ofertas no mercado acionário numa oferta pública. Então precisava incorrer nesse custo.
Além disso, precisava ter três diretores, pagar salário de todos. Tinha uma estrutura cara. Não podia premiar o trabalho. Nas sociedades de empresas de pequeno e médio porte é fundamental. A gente sabe muito bem. Estamos em outras iniciativas, montando escola virtual. Temos que premiar o sujeito que está com trabalho, que entende do assunto. Não é só o capital que tem que ser premiado senão você não incentiva as pessoas numa organização empresarial. Por isso a necessidade de distribuição de dividendos.
O impacto disso vai ser brutal. Primeiro lugar: diminuição da mortalidade de pequenas e médias empresas. Segundo, diminuição do custo do dinheiro. Terceiro: facilidade do manejo das empresas. Quarto lugar: vamos ter diversidade empresarial, que é fundamental no regime produção capitalista.
Lembro nos anos 1970 que a gente entrava num supermercado no Brasil e via uma marca de suco, uma marca de margarina, uma marca de farinha de milho. Hoje tem mais diversidade nas prateleiras. Naquela época você assistia a um filme dos Estados Unidos, via lá um supermercado completamente diferente. No Brasil, precisamos de diversidade empresarial, maior concorrência e menor preço ao consumidor, menor poder econômico. E o menor poder econômico tem menos ingerência sobre o Estado e o governo, o que é bom pra todo mundo.
ConJur — Os Estados Unidos faliram em 1929. Uma das ferramentas para a revitalização da economia foi a simplificação da criação de empresas, uma iniciativa que nunca chegou ao Brasil. Abrir ou fechar uma empresa é uma dificuldade imensa. O senhor acha muito exagero fazer uma comparação entre essa iniciativa da década de 1920 com esse regime jurídico?
Warde — Não acho. Acho que se pode fazer em 2021 algumas coisas que deveriam ter sido feitas nos anos 1930, 1940. Outras estão evoluindo. De fato os EUA sofreram com o crash da Bolsa de Nova York em 1929, cujo causa básica era a falta de regulação de capitais, que permitiu uma série de operações de estruturas de mercados fraudulentos. Logo em seguida o presidente [Franklin] Roosevelt reorganiza o mercado de capitais e pune duramente fraudes no mercado de capitais, mas também cria uma brutal simplificação na atividade empresarial, junto com gigantesco investimentos público.
ConJur — O que falta regulamentar ainda pra que essa inovação entre em prática?
Warde — Falta a CVM e também a nossa Bolsa [B3], em parceria, regularem a criação de um mercado de acesso para empresas aderentes ao regime de sociedade anônima simplificada. Para que possam fazer primeiro o regime de companhia aberta, possam abrir o capital, pedir uma autorização para a CVM, de uma maneira mais simplificada. Além disso, precisam estabelecer condições para ofertar emissões e também títulos de dívidas ao público anônimo. Abrir o mercado secundário para que essas ações, títulos de dívidas, possam ser comercializadas entre investidores, que é fundamental para a liquidez dos papéis.
Fonte: Conjur