Blockchain e o direito societário
Muito já se falou a respeito da possibilidade de emissão de ações por empresas utilizando-se da tecnologia Blockchain, a chamada tokenização de ações. Esse tem sido o foco de muitos empreendedores que veem no emprego da tecnologia Blockchain a possibilidade de aumento na liquidez, desburocratização, redução de custos, transparência e segurança.
No Brasil, entretanto, em razão de diversas restrições impostas a fim de, a princípio, proteger os investidores, os empreendedores acabam por ser obrigados a usar sua criatividade na busca por mecanismos que lhes possibilitem, de um lado, cumprir com as regras postas e de outro, beneficiar-se da tecnologia e não ficar para trás na competição que hoje já não encontra limites nas fronteiras dos países. Infelizmente, é justamente por essa razão que os projetos de tokenização de ações desenvolvidos no Brasil acabam funcionando quase que de maneira figurativa, uma vez que as transações realizadas na Blockchain dependem de seu espelhamento nos livros societários para que sejam consideradas formalmente válidas e juridicamente eficazes.
O Estado de Delaware (EUA) desponta como um dos pioneiros nesse sentido ao tentar enfrentar essa questão, desde 02 maio de 2016, com o anúncio da chamada Delaware Blockchain Initiative (DBI), que, entre outras questões, auxiliou na construção de uma agenda positiva para aplicação da tecnologia Blockchain pelo poder púbico daquele Estado.
Pela oferta de registros em Blockchain, as autoridades estaduais de Delaware viram a oportunidade de criar ainda mais valor para empresas que escolhem o Estado para sua constituição. Esses registros incluem não apenas serviços de incorporação, mas também UCCs – Uniform Commercial Code filling, títulos fundiários, títulos de propriedade pessoal, certificados de nascimento / óbito, licenças profissionais e muitos outros novos tipos de registros que o Estado pode introduzir como parte do DBI (por exemplo, diamantes e outros produtos de luxo).
Kristopher Knight, vice-secretário do Estado de Delaware, em 12 de fevereiro de 2018 comentou que os registro em blockchain dos UCCs seriam lançados com relativa rapidez. Os registros de ações, por outro lado, exigirão mais tempo para identificar as ferramentas e os relatórios e, em seguida, expandir o escopo para um público maior.
Foi nesse contexto que surgiu a “Senate Bill 69”, assinada em 21 de julho de.2017, lei que alterou o Código de Delaware, modificando a seção que trata do direito relacionado às empresas para, entre outras providências, prever a possibilidade de registro de livros de ações por meio de “distributed ledger”.
Ainda que em pouco se possa comparar a common law ao sistema jurídico brasileiro, vale observar que, com modificações relativamente pontuais, o Estado de Delaware foi capaz de legalmente reconhecer de maneira específica a manutenção de registros corporativos em Blockchain, permitindo que tais registros sejam mantidos em uma ou mais redes eletrônicas ou bancos de dados desde que certas condições sejam atendidas, incluindo (i) que os registros mantidos sejam convertidos em papel claramente legível dentro de registros mantidos sejam convertidos em papel claramente legível dentro de um prazo razoável e (ii) com relação aos registros de valores mobiliários, que tais registros sejam capazes de ser utilizados para preparar uma lista de acionistas com direito a voto, registrar informações exigidas por lei e registar transferências de ações nos termos impostos por Delaware. Pode parecer sutil, mas ainda que se mantenha a necessidade de, em algum momento, serem os registro convertidos em papel, o fato de a validade do ato não advir, a priori, dessa conversão representa uma grande quebra de paradigma.
Ora, independentemente das limitações que possam ter sido impostas e de qualquer questionamento sobre o quão indispensáveis essas limitações são de fato, uma série de benefícios pode ser garantida pela simples aceitação do registro de ações em Blockchain: (i) as ações registradas em blockchain podem ser liquidadas em instantes, aumentando a liquidez do mercado enquanto libera capital e reduz os custos de transação; e (ii) um livro-razão imutável e transparente que mostra com total certeza a titularidade de cada uma das ações da companhia, facilitando a gestão riscos e a administração de suas tabelas de capitalização.
Esse movimento regulatório de Delaware não é isolado. Na mesma linha, o governo de Luxemburgo, em 01 de março deste ano, publicou norma que permite a emissão de “cryptosecurities” em todos os casos em que títulos desmaterializados regulares possam ser emitidos.
Parece-nos claro, então, que, seja por todos os benefícios mencionados, seja pela crescente aderência de diferentes sistemas jurídicos à tecnologia, o registro de atos societários em Blockchain é uma tendência que, se não acompanhada pelo Brasil, cobrará do mesmo a remediação do tempo perdido em um futuro muito mais próximo do que muitos imaginam.
Nesse sentido, parece promissor o posicionamento externado pela CVM no Comunicado Conjunto de 13 de junho deste ano, que previu ação coordenada para implantação de regime de sandbox regulatório nos mercados financeiro, securitário e de capitais brasileiros visando possibilitar a esses mercados o teste de novas tecnologias, como DLT, blockchain, roboadvisors e IA, mediante concessão de autorizações temporárias e a dispensa, excepcional e justificada, do cumprimento de regras para atividades reguladas específicas, observando critérios, limites e períodos a serem estabelecidos.
Rodrigo Caldas de Carvalho Borges e Alan Gonçalves de Oliveira são, respectivamente, membro fundador da Oxford Blockchain Foundation e sócio no CB Associados; advogado no mesmo escritório.
Fonte: Valor Econômico