O STJ, o ICMS e o crime contra a ordem tributária
Historicamente a jurisprudência das 5ª e 6ª Turmas do STJ é marcada por entendimentos divergentes quanto à tipificação de crime contra a ordem tributária previsto no artigo 2º, inciso IIi da Lei nº 8.137/1990 quando o contribuinte declara o ICMS, mas deixa de efetuar o pagamento aos cofres públicos.
O artigo 2º, inciso II da Lei nº 8.137/1990 tem como tipo penal deixar de recolher tributo, “descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos”. Como o ICMS é tributo que, por sua natureza, é transferido economicamente ao destinatário da mercadoria, a abertura semântica do termo “descontado ou cobrado” previsto no inciso II do referido artigo permite interpretação ampla.
No STJ, a interpretação da legislação penal e julgamento dos processos penais compete à 5ª e 6ª Turma. Para a 6ª Turma do STJ, a mera inadimplência de ICMS devido em operações próprias não seria suficiente para constituir crime contra a ordem tributária; nesse caso, deve haver o não repasse aos cofres públicos de ICMS em caso de substituição tributária. A 5ª Turma, porém, não faz a mesma distinção, pois seria irrelevante para fins de tipificação penal o fato de o ICMS ser devido por substituição tributária ou por operações próprias.
Muito embora o entendimento desses órgãos colegiados fosse demarcado por diferenças, não havia unanimidade entre os Ministros. Nos últimos anos houve decisões monocráticas proferidas por Ministros que compõem tanto a 6ª quanto a 5ª Turma, no sentido de que em qualquer hipótese – ICMS próprio ou substituição – o mero inadimplemento é suficiente para configurar o crime previsto no art. 2º do inciso II, da Lei nº 8.137/1990, em nítido desrespeito ao princípio da colegialidade.
De fato, a jurisprudência nos últimos anos das mencionadas Turmas do STJ demonstra que o entendimento dos Ministros nunca foi linear: ora os Ministros aplicavam a imputação penal apenas na hipótese de substituição, ora aplicavam a ambas as hipóteses.
Essa situação agravou ainda mais a insegurança jurídica de administradores/gestores de pessoas jurídicas que, diante da necessidade de gerir outras obrigações (e.g. salários, FGTS, contribuição previdenciária, Imposto de Renda Retido na Fonte) e sem a intenção de malferir o erário público, viram-se diante da possível imputação penal, a depender da sorte distribuição de seus recursos nas Turmas do STJ.
Em razão disso, os Ministros reuniram-se perante a 3ª Seção de julgamento do STJ e selecionaram o Habeas Corpus nº 399.109 para prevenir divergência e uniformizar o entendimento entre as Turmas. Referido HC fora impetrado pela Defensoria Pública do Estado de Santa Catarina em favor do administrador de determinada sociedade contribuinte de ICMS e que, realizando a venda de mercadorias, declarou o ICMS próprio de alguns poucos meses, mas deixou de pagar. Considerando a descrição fática do acórdão, tratou-se de caso simples, sem envolvimento de fraude, nota fiscal inidônea ou outro tipo de situação de fato que pudesse influenciar na análise da tese.
Após o julgamento, foi pacificado o entendimento de que o crime de apropriação indébita tributária previsto no art. 2º, inciso II, da Lei nº 8.137/1990 é praticado pelo sujeito passivo da relação jurídica tributária que age, conscientemente, na inadimplência do ICMS próprio ou devido por substituição tributária.
A expressão “descontado ou cobrado” contida no enunciado penal foi definida pelos Ministros da seguinte forma: “a interpretação consentânea com a dogmática penal do termo ‘descontado’ é a de que ele se refere aos tributos diretos quando há responsabilidade tributária por substituição, enquanto o termo ‘cobrado’ deve ser compreendido nas relações tributárias havidas com tributos indiretos (incidentes sobre o consumo), de maneira que não possui relevância o fato de o ICMS ser próprio ou por substituição, porquanto, em qualquer hipótese, não haverá ônus financeiro para o contribuinte de direito”.
Para definir o conceito de “cobrado” a 3ª Seção do STJ partiu de premissas econômicas, já que o destaque do imposto na nota fiscal e a possibilidade de utilizar créditos de insumos (sistemática da não cumulatividade) traduzem a tributação sobre o valor agregado, evitando a tributação em cascata e concentrando o encargo financeiro no último sujeito da cadeia produtiva.
Segundo o entendimento dos Ministros do STJ, o ICMS próprio e o devido por substituição tributária (contribuinte e responsável tributário) é suportado pelo consumidor, sendo a pessoa jurídica mera arrecadadora, cuja obrigação é repassar o tributo aos cofres públicos.
Essa decisão, contudo, não foi unânime entre os julgadores (5 a 3) presentes à sessão:
Malgrado o julgamento tenha sido concluído no STJ, não se pode afirmar que é definitivo naquele órgão, pois a análise da jurisprudência nos últimos anos demonstra que o entendimento dos Ministros oscilou, conforme já mencionado. Inclusive, a mudança de entendimento do Ministro Reynaldo Soares da Fonseca foi expressamente mencionada em seu voto para, curvando-se ao entendimento do relator, julgar de forma desfavorável ao paciente (representante do contribuinte tributário).
Contra o acórdão proferido pelo STJ, a Defensoria Pública interpôs Recurso Ordinário ao Supremo Tribunal Federal (“STF”) que aguarda análise pelo Ministro Roberto Barroso desde 05.10.2018.
Questões Preliminares
O ICMS é um imposto estadual, não-cumulativo, incidente sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual, intermunicipal e de comunicação (artigo 155, inciso II, da Constituição Federal).
Via de regra, o ICMS é calculado em cada etapa da cadeia de comercialização, compensando-se o que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o montante cobrado nas etapas anteriores pelo mesmo ou outro Estado, pelo sistema de crédito e débito.
Esse tributo deve ser destacado no respectivo documento fiscal, separando-o contábil e fiscalmente do preço da mercadoria para fins de creditamento, quando admitido pela legislação, pelo contribuinte adquirente. O ICMS deve ser recolhido pelas pessoas jurídicas que realizem a venda de mercadorias ou prestação de serviços de transporte intermunicipal, interestadual ou de comunicação (denominadas de contribuinte de direito), mas o seu ônus financeiro é repassado ao adquirente das mercadorias e tomadores dos serviços acima mencionados (denominadas de contribuinte de fato).
Vale notar, aqui, que o “repasse” do ônus financeiro é realizado, na maioria dos casos, em todos os tributos, por comporem o custo do vendedor ou prestador. A questão chama a atenção no caso de ICMS tão somente porque há a segregação (por imposição legal) no documento fiscal que acompanha a operação mercantil.
Diferentemente do ICMS incidente sobre a operação própria do vendedor, o regime de substituição tributária, por sua vez, consiste em mecanismo para a cobrança e recolhimento do ICMS criado para simplificar e facilitar o recolhimento do ICMS pelo Estado. De acordo com referida sistemática, a responsabilidade pelo recolhimento do ICMS incidente sobre o produto final em toda cadeia é atribuída a uma única parte, que irá recolher o ICMS em nome dos outros contribuintes envolvidos na cadeia de comercialização.
No regime de substituição tributária, não se afasta o direito à apropriação de crédito por contribuinte substituído que recebe a mercadoria com o imposto retido, ainda que sem o destaque no documento fiscal que acompanha a mercadoria. Nesse caso, a legislação traz sistemática específica para que o contribuinte calcule o valor de ICMS a ser creditado.
O responsável pelo recolhimento do imposto é chamado de substituto tributário e é, geralmente, a pessoa jurídica que está no primeiro nível da cadeia (i.e., normalmente o importador ou o fabricante dos produtos), sendo responsável pelo recolhimento do ICMS devido sobre suas próprias operações (ICMS Próprio) e pela retenção do ICMS devido nas operações subsequentes (ICMS-ST).
Nessa sistemática, o substituído tributário é todo aquele que recebe a mercadoria com o ICMS retido pelo contribuinte substituto (i.e., todos os demais contribuintes da cadeia), com exceção do consumidor final.
Breve análise crítica
A caracterização de crime pelo não pagamento de ICMS em regime de substituição tributária já era praticamente pacífica entre os Ministros do STJ, considerando que a pessoa jurídica, sob determinada gestão/administração, retém o valor de terceiro e se apropria indevidamente. A questão controvertida, vale destacar, é a falta de pagamento do ICMS próprio, devidamente declarado, que foi pacificado, agora, como crime contra a ordem tributária tipificado no artigo 2º, inciso II, da Lei nº 8.137/1990.
O tema é recente, objeto de inúmeras críticas por parte dos operadores do direito.
Nesse sentido, vale mencionar que o contribuinte ou responsável é a pessoa jurídica que, com habitualidade, realiza operações mercantis. A responsabilidade pessoal dos administradores, gestores ou representantes legais de pessoas jurídicas por débitos tributários da sociedade ocorre nas hipóteses do artigo 135, inciso III, do Código Tributário Nacionalv (“CTN”).
Para que o os administradores, gestores e representantes legais sejam considerados como devedores é imprescindível que se comprove a ocorrência dos pressupostos legais, tais como (i) efetivo poder de gestão; (ii) excesso de poder (ultrapassar os limites de poderes e atribuições outorgadas pela sociedade) ou (iii) infração à lei ou contrato/estatuto social (lei que influencie na existência da pessoa jurídica.
Não sendo o caso de aplicação do artigo 135, inciso III do CTN, ou seja, inexistindo responsabilidade pessoal dos administradores, gestores ou representantes legais, com a recente decisão do STJ estabeleceu-se uma verdadeira contradição jurídica, pois se de um lado as referidas pessoas físicas não são devedoras tributárias, de outro podem ser penalmente responsáveis. Como que uma pessoa pode figurar ao mesmo tempo como responsável penal pela falta de pagamento de ICMS e não ter nenhuma relação jurídica com o débito?
Outras contradições também podem ser construídas a partir do acórdão proferido pelo STJ: (i) não é o consumidor final o sujeito passivo da relação jurídica tributária; (ii) todos os tributos são repassados ao preço da mercadoria, embora alguns não sejam tão explícitos; (iii) o destaque do ICMS na nota fiscal é obrigação acessória para garantir a operacionalidade do princípio da não cumulatividade; (iv) o ICMS próprio não é cobrado nem descontado de terceiros e faz parte tão somente da obrigação da pessoa jurídica para com o Estado; (v) a distinção entre contribuinte de fato x contribuinte de direito é exclusiva para fins de repetição do indébito e até mesmo pode ser considerada como inexistente juridicamente; (vi) o consumidor não detém legitimidade, via de regra, para repetir o indébito de ICMS, nem de ser cobrado caso a pessoa jurídica não cumpra a obrigação.
Embora essas questões tenham sido ventiladas superficialmente no acórdão proferido pelo STJ, caberá ao STF proferir a palavra final sobre o assunto, que inclusive já teve a oportunidade de se manifestar no ARE 999.425 em 03.03.2017, no sentido de que “as condutas tipificadas na Lei 8.137/1991 não se referem simplesmente ao não pagamento de tributos, mas aos atos praticados pelo contribuinte com o fim de sonegar o tributo devido, consubstanciados em fraude, omissão, prestação de informações falsas às autoridades fazendárias e outros ardis. Não se trata de punir a inadimplência do contribuinte, ou seja, apenas a dívida com o Fisco”.
Apesar da sanção política e, nesse caso a penal, ser uma antiga e ilegal forma de combate à inadimplência tributária e estar no sob análise do STF – relatoria do Ministro Roberto Barroso no RHC nº 163.334 – o entendimento da 3ª Seção do STJ já está sendo aplicado aos casos de mera inadimplência de ICMS próprio ou devido por substituição tributária.
Além disso, tendo em vista a repercussão social e econômica do recente entendimento do STJ, a responsabilização por crime contra a ordem tributária previsto no artigo 2º, inciso II da Lei nº 8.137/90 poderá chegar ao absurdo de alcançar contribuintes inadimplentes de outros tributos considerados indiretos, como o Imposto sobre Serviço de Qualquer Natureza (“ISSQN”) e Imposto sobre Produtos Industrializados (“IPI”).
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i Art. 2° Constitui crime da mesma natureza:
II – deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos.
ii Como exemplo, basta verificar o julgamento do HC nº 161.785-SP em 06.12.2016 pela 5ª Turma em que os Ministros, à unanimidade, manifestaram-se no sentido de que o fato crime só é configurado na hipótese de ICMS – substituição tributária, diferentemente da forma como julgaram o leading case, HC nº 399.109. Outros julgados também podem ser vistos nesse sentido, julgados em 2017: HC nº 48.089/SC e AgRg no AREsp 1.138.189/GO.
iii HC 399.109/SC, Rel. Ministro Rogerio Schietti Cruz, Terceira Seção, julgado em 22/08/2018, DJe 31/08/2018.
iv STF. RHC nº 163.334, distribuído em 05.10.2018, sob a Relatoria do Ministro Roberto Barroso.
v “Art. 135. São pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos:
III – os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado”.
vi HC 424.099/SC, Rel. Ministro Reynaldo Soares Da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 04/09/2018, DJe 13/09/2018; AgRg no RHC 97.835/SC, Rel. Ministro Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, julgado em 02/10/2018, DJe 11/10/2018; AgRg no HC 442.398/GO, Rel. Ministra Laurita Vaz, Sexta Turma, julgado em 25/09/2018, DJe 11/10/2018; RHC 93.180/SC, Rel. Ministro Jorge Mussi, Quinta Turma, julgado em 11/09/2018, DJe 19/09/2018; RHC 85.338/SC, Rel. Ministro Jorge Mussi, Quinta Turma, julgado em 11/09/2018, DJe 19/09/2018; RHC 94.051/SP, Rel. Ministro Jorge Mussi, Quinta Turma, julgado em 11/09/2018, DJe 19/09/2018; HC 424.099/SC, Rel. Ministro Reynaldo Soares Da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 04/09/2018, DJe 13/09/2018, e outros.
vii “Art. 1° Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas: (…)
Art. 2° Constitui crime da mesma natureza:
II – deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos”.
viii “A jurisprudência desta Corte Superior é firme no sentido de que a legitimidade do contribuinte de direito para postular a restituição ou a compensação de indébito relativo a tributo indireto (no caso dos autos o IPI), está condicionada à comprovação do não-repasse da exação, na forma do art. 166 do CTN.” (AgRg no REsp 1222542/SC, Rel. Ministro Sérgio Kukina, Primeira Turma, julgado em 06/08/2015, DJe 20/08/2015)