Uma proteção contra os abusos
O Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) é o órgão do Ministério da Fazenda que garante aos contribuintes o direito de contestar o valor de multas cobradas pela Receita Federal. Sem esse órgão de segunda instância, pessoas físicas e jurídicas ficariam exclusivamente nas mãos de fiscais da Receita, guardiões de uma das leis tributárias mais confusas do mundo, digna dos enredos do romancista tcheco Franz Kafka. Erros de avaliação e exageros na aplicação de punições, bem ou mal-intencionados, podem condenar pessoas físicas e jurídicas à falência. O Carf dilui o poder do fiscal e constitui um foro mais capaz de julgar assuntos com mais celeridade e precisão do que se fossem encaminhados para a Justiça comum. Sempre importantes, celeridade e precisão são essenciais para dirimir litígios potencialmente complicados. De um lado, o Estado, responsável pelo tribunal e interessado em arrecadar. Do outro, empresas gigantes, como bancos, construtoras e montadoras. Em jogo, a aplicação ou anulação de multas bilionárias. Quanto maiores os interesses envolvidos, maior o potencial de corrupção.
A Operação Zelotes, da Polícia Federal, encontrou indícios de fraude nesse ambiente naturalmente suscetível a tráfico de influência e corrupção. A PF afirma que conselheiros do Carf, ex-conselheiros e empresas ligadas a eles movimentaram R$ 55,5 milhões em 93 transações financeiras atípicas, identificadas pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) de 2005 a 2012. Só um dos escritórios de advocacia, a SGR Consultoria, recebeu R$ 6,2 milhões de empresas favorecidas pela redução ou anulação de multas. Segundo um dos e-mails interceptados pela PF, a Marcopolo, fabricante de carrocerias de ônibus, é suspeita de pagar R$ 1 milhão pela anulação de uma multa de R$ 200 milhões. “Os acórdãos em anexo foram ‘negociados’ com as pessoas daquele esquema que já conversamos… houve pagamento de R$ 1 milhão”, diz um conselheiro do Carf, em e-mail enviado para Gerson Schaan, chefe da Coordenação de Pesquisa e Investigação da Receita Federal.
Em outro e-mail, Edison Pereira Rodrigues, ex-presidente do Carf e pai de uma conselheira, afirma garantir à montadora Ford grandes chances de vitória em um processo. Em troca do serviço, pede uma “taxa de sucesso”. “Se eu participar (…) eles têm mais ou menos 95% de chances de ganhar. Caso contrário, perderão com certeza. A bola está com vocês. (…) Não pagarão mais do que 2% a 3%.” Segundo a PF, a anulação de multas em condições suspeitas fez a montadora deixar de pagar R$ 1,7 bilhão. Ao todo, suspeita a polícia, 74 empresas – gigantes como Bradesco, Camargo Corrêa, Gerdau, Light e Petrobras – lesaram os cofres públicos em pelo menos R$ 5,7 bilhões. É bastante dinheiro, mais que meio escândalo da Petrobras – de onde foram desviados R$ 10 bilhões, segundo a Operação Lava Jato.
Por causa das evidências de corrupção, há quem defenda a extinção do órgão. “O Carf é totalmente suscetível à corrupção. Um grande escoadouro de recursos públicos”, diz Frederico Paiva, procurador do Ministério Público Federal (MPF) encarregado da Operação Zelotes. Nada mais injusto. Segundo a própria PF, o Carf indeferiu 95,8% dos recursos a autuações lavradas em 2010. Não é, portanto, um forno onde multas milionárias transformam-se em pizza. Ao contrário. Uma taxa tão alta de recursos negados sugere uma estrutura montada para manter as decisões. Sugere a necessidade de aumentar a transparência e a representatividade do órgão. Se o Carf é imperfeito, como mostra a investigação da PF, a solução é fortalecê-lo, e não extingui-lo.
O Carf é um colegiado composto de 200 conselheiros não remunerados, que trabalham voluntariamente. Metade são auditores fiscais indicados pelo Ministério da Fazenda, representantes do Estado, metade são advogados tributaristas, representantes do setor produtivo. Não é um tribunal como o da Justiça comum, com jurados e defensores das partes. Se você questionar uma multa, não poderá argumentar pessoalmente ou por meio de seu advogado. Terá de confiar em representantes que recebem a mesma quantia – nenhuma – caso ganhem ou percam o recurso. Em caso de empate, o voto de minerva é dado pelo presidente da turma de julgamento – sempre um representante do Fisco, segundo o regimento interno. O impasse tende a favorecer o acusador, e não o acusado, numa inversão do valor que prevalece na Justiça comum brasileira.
A nomeação dos conselheiros é uma forma pouco transparente de escolha, sujeita a apadrinhamentos. Eles poderiam ser escolhidos por concurso público, como são juízes e defensores públicos. O Movimento de Defesa da Advocacia propõe um rodízio de presidentes entre representantes do Estado e dos contribuintes, a fim de equilibrar as forças. A Unafisco, associação dos auditores fiscais da Receita, pede a profissionalização dos conselheiros. “Estamos falando de grandes advogados, experientes”, diz o manifesto da Unafisco. “Obviamente, não vão ficar três anos trabalhando de graça, sem esperar que os dividendos cheguem de alguma maneira.” Como ninguém trabalha de graça, a sociedade paga a conta. Estamos descobrindo agora o valor da fatura, por causa de uma investigação criminal.
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