Sem manobra, economia pública é 65% da anunciada, avalia mercado
Bancos e consultorias consideram dados oficiais imprecisos para estimativas e fazem cálculo próprio. Descrédito preocupa setores do governo; operações para fechar contas no fim de 2012 agravam discrepâncias.
A criatividade do Tesouro Nacional para fechar suas contas, com o uso de sucessivas manobras contábeis e brechas legais, criou no Brasil uma contabilidade paralela à oficial que coloca em risco a credibilidade fiscal da gestão Dilma Rousseff.
Bancos e consultorias passaram a expurgar receitas e depurar gastos para calcular um superavit “puro” e poder estimar o impacto na economia e fazer suas projeções.
Nesses cálculos, a economia do setor público para pagar juros da dívida foi no mínimo 35% menor que a oficial em 2012. O descrédito em relação aos números do Tesouro já assusta integrantes da equipe do ministro Guido Mantega (Fazenda).
A crise teve seu auge nas últimas semanas, quando se tornou pública a triangulação com bancos públicos e o Fundo Soberano para fechar os números de 2012.
O dado do ano, que só será divulgado no fim deste mês, foi apelidado de “superavit elfo”, numa referência ao conto de Natal publicado em um dos blogs do jornal britânico “Financial Times”.
No texto, a presidente Dilma é uma das renas do trenó do Papai Noel e perde o posto para o presidente do México. O ministro Guido é um elfo que defende Dilma e cujas previsões são consideradas muito otimistas.
ARGENTINA
Dentro do governo, receia-se que surjam comparações com a Argentina, onde as estatísticas oficiais perderam a credibilidade. Para um interlocutor do governo, essa não é uma avaliação justa, pois no Brasil é possível refazer os cálculos, justamente porque todos os números estão disponíveis para o público.
“As pessoas podem não concordar com a medida do governo, mas as outras informações são divulgadas também”, argumenta.
A Folha ouviu cinco instituições financeiras, entre bancos, corretoras e consultorias, que fazem o expurgo. Para alguns, a prática era limitada a 2010 em razão de uma manobra feita com a Petrobras. Agora, foi ampliada.
Gabriel de Barros, economista da FGV (Fundação Getulio Vargas), desconta as receitas extraordinárias e contábeis há dois anos e diz que, desde 2008, o resultado primário está superestimado em cerca de R$ 145,6 bilhões.
“O superavit era uma boa medida do impacto da política fiscal na demanda. Isso deixou de ser verdade, quando o governo passou a usar a contabilidade criativa.”
O Itaú divulgou nesta semana relatório retirando dos resultados oficiais receitas extraordinárias e operações contábeis. No caso dos dividendos, o banco estima um repasse atípico de R$ 47,3 bilhões desde 2009.
“A ideia [de fazer o ajuste] é tentar capturar o esforço fiscal propriamente dito para extrair seu impacto na demanda”, observa o economista do banco Marcelo Oreng.
A consultoria LCA faz um ajuste mais simples, abatendo as receitas com capitalização da Petrobras em 2010 e o dinheiro do Fundo Soberano. O objetivo dos cálculos próprios “é deixar a medida de superavit primário mais ‘pura'” para avaliar o impacto na inflação, diz o economista-chefe Bráulio Borges.
A Quest Investimentos está concluindo os cálculos da sua estimativa “pura”. A corretora Convenção Tullett Prebon divulgou ontem relatório com o resultado ajustado de 2012, sem o impacto das operações feitas no final do ano.
Divulgar dado não oficial é motivo de multa na Argentina
Na Argentina, o Indec (o IBGE local) é acusado de maquiar seus números desde 2007, e as consultorias privadas que divulgam seus índices próprios de inflação são multadas pelo governo.
O órgão está sob intervenção do governo desde 2007, quando a inflação começou a disparar -o ex-presidente Néstor Kirchner tinha como obsessão manter o índice abaixo dos dois dígitos.
Desde então, consultorias privadas passaram a calcular a inflação de forma independente, com uma diferença gritante em relação aos números oficiais.
Enquanto para o governo a inflação é de 9% ao ano, para as consultorias, chega a 25%. A revista “The Economist” parou recentemente de divulgar os dados do Indec, preferindo os de uma consultoria. E a Argentina já foi advertida publicamente pelo FMI (Fundo Monetário Internacional) pela maquiagem dos dados.
Recentemente, o secretário de Comércio Interior, Guillermo Moreno, levantou nova polêmica ao afirmar que, na Argentina, era possível comer diariamente por 6 pesos (cerca de R$ 2,5), segundo a cesta básica oficial.
O Indec também é acusado de maquiar outros índices, como os de pobreza. Para o órgão, existem 9% de pobres no país. Já instituições como a Universidade Católica calculam esse número na faixa dos 21%.
ANÁLISE
Artifícios distorcem austeridade e investimento
Um incauto que quisesse conhecer as contas do governo poderia crer que uma fonte usual de receita do Tesouro é uma certa “cessão onerosa para exploração do petróleo”.
Afinal, essa rubrica consta de todos os relatórios mensais dos resultados do Tesouro e de uma planilha oficial que registra a evolução dos principais componentes da receita e da despesa federal desde janeiro de 1997.
Mas, quando se observam os dados com mais atenção, percebe-se que o valor arrecadado com a tal “cessão onerosa” é zero em 190 dos 191 meses do período. Só em setembro de 2010 aparecem espetaculares R$ 74,8 bilhões.
A rubrica e a sucessão de zeros na estatística são parte de um esforço quase heroico para dar aparência de normalidade a uma insólita manobra para camuflar o estouro das contas federais.
O dinheiro foi pago ao Tesouro pela Petrobras, que recebera títulos da dívida federal para engordar seu caixa. De tão extravagante, a operação não se encaixava nos itens da contabilidade pública -foi preciso introduzir um novo.
As consequências vão além da anedota. A análise da política fiscal, fundamental para as previsões de endividamento público e inflação, depende da solidez dos dados.
Os números oficiais indicam, por exemplo, piora da receita em 2011 -ocorreu o contrário. Da mesma forma enganosa, 2010 e 2012 parecem períodos de austeridade nos quadros do Tesouro.
A maquiagem não se restringe aos truques necessários para cumprir as metas fiscais. As estatísticas mostram também um forte aumento dos investimentos do governo em 2012, a despeito da estagnação na infraestrutura.
Para tanto, subsídios do Minha Casa, Minha Vida passaram a ser contabilizados ao lado das obras públicas. O gasto com investimentos subiu, literalmente, por decreto – assinado por Dilma para sacramentar a reclassificação dos subsídios.
* Folha de S.Paulo