Recuperação judicial necessita de ajustes no Brasil, defende advogado
Depois de 13 anos em vigor, a lei de recuperações e falências precisa de ajustes. Entre as mudanças, está a inclusão de créditos tributários e de alienação fiduciária. Os dois itens são defendidos pelo advogado João Fernandes Junior, que atua nos dois lados do balcão, tanto na assessoria de empresas que encaram a recuperação como no posto de administrador judicial. Fernandes também considera crucial mudar a cultura empresarial sobre o uso do mecanismo. Nem sempre a luz amarela das dificuldades é acesa ou percebida no momento adequado pelos donos do negócio, adverte o advogado, que também preside a Comissão de Falências e Recuperações Judiciais da OAB-RS. Com know how de fazer parte de escritório que acompanha 50 processos de recuperação, entre eles o maior do Rio Grande do Sul, que é o da Ecovix, e 300 de falências, duas frentes que somam passivos de mais de R$ 10 bilhões, o advogado aponta a transparência das informações como outro fator que elevará a maturidade no uso do instrumento. Este item e incentivo a aportes de investidores integram propostas que tramitam no Congresso Nacional.
JC Contabilidade – O ano de 2018 terminou com crescimento de pedidos de recuperação judicial e queda em falências frente a 2017. O que este quadro mostra sobre o uso desses mecanismos?
João Fernandes Junior – O aumento dos pedidos de recuperação no fim do ano é comum, principalmente pelo efeito do 13° salário no caixa das empresas que já enfrentam dificuldades financeiras. Já os pedidos de falência são provenientes da crise política e econômica que assola o Brasil nos últimos anos. Além destes elementos nefastos, 2018 ainda foi agravado pela greve dos caminhoneiros e o período eleitoral. Tivemos um pico em 2008 e 2009 de processos de recuperação e recrudescimento em 2016, 2017 e 2018. Não dá para ignorar que, entre 2013 e 2015, as empresas tomaram crédito muito facilmente e depois sofreram quando os bancos enxugaram a oferta. Quem estava neste ciclo vicioso, dependendo desse crédito, enfrentou problemas. Como a engrenagem trancou, empresas tiveram de buscar um mecanismo para gerir a situação financeira, como a recuperação judicial.
Contabilidade – Em 2019, o quadro muda?
Fernandes Junior – As eleições trouxeram ânimo, independentemente de viés político. Não vamos decolar em 2019, mas há sinais de recuperação econômica. No começo deste ano, podemos ter rescaldo de uma crise mais longa, que exigirá ajustes, e, com isso, podem surgir mais casos de recuperação (e falências). Mas os empresários têm mais conhecimento dos mecanismos e podem buscar mais cedo o expediente para superar problemas. A retomada da economia cria também condição para pagar débitos, por exemplo.
Contabilidade – O que leva uma empresa à Justiça?
Fernandes Junior – É uma soma de fatores. Uma empresa com melhor planejamento de fluxo de caixa consegue superar períodos de crise, normais na vida de um negócio. Mas muitas se alavancaram demais, fizeram investimentos muitos fortes, apostando na perspectiva promissora do País. Escândalos como a Lava Jato trouxeram também dificuldades maiores, rompendo o ciclo. Mas há empresas que não se planejaram para passar por restrições ou não sabem trabalhar com planejamento econômico-financeiro.
Contabilidade – A recuperação é a melhor solução?
Fernandes Junior – A lei está na pré-adolescência, por isso ainda não há informação correta do êxito de uma restauração empresarial. A recuperação é um dos remédios possíveis para se usar na crise, mas há negociações e até recuperações extrajudiciais.
Contabilidade – Quando a recuperação judicial deve ser buscada?
Fernandes Junior – Quando o paciente está na UTI, mas não é porque a situação é tão crítica. Muitas empresas tentam antes a via extrajudicial, mas, por algum motivo, como a recusa de credor, não é possível. A recuperação judicial estabelece um período onde as obrigações deixam de ser exigidas. É um tubo de oxigênio para que a empresa possa se refazer, estruturar seu plano de recuperação e enxugar a estrutura. É o momento de fazer o dever de casa. Mas a maior parte dos empresários acha que a recuperação judicial é o único remédio e não é. Faz parte de um tratamento. O negócio chegou a um nível de endividamento tal porque a atividade não é tão boa mais ou porque estava muito alavancado nos bancos, que leva os custos. Precisa rever tudo isso. Se está com sobrepeso, tem de fazer dieta, ir à academia. Não adianta só uma coisa ou outra. Este é o procedimento a ser seguido pelo empresário.
Contabilidade – As empresas fazem essa revisão de hábitos?
Fernandes Junior – O empresário, muitas vezes, tem uma visão equivocada da recuperação, pois acha que vai entrar um administrador judicial para comandar a empresa. Não é nada disso. Ele será o link entre a empresa, o juiz e os credores, também dá transparência ao processo e fiscaliza as atividades. Isso é importante: a empresa está pedindo um auxílio ao Poder Judiciário, então precisa ser transparente sobre bens e a situação do negócio. Muitos donos de empresas ou administradores têm uma barreira cultural, pois acham que o instrumento é suficiente e podem seguir fazendo a mesma coisa. Quem usa a recuperação dentro do que se propõe, tem de fazer o dever de casa, que é reestruturar a operação. Por exemplo, se o que a empresa faz não tem mais mercado, vai ter buscar outro caminho, se reinventar. Nem sempre o empresário não tem esse discernimento. Outra situação que precisa ser contornada é, que no curso da crise, emergem problemas societários. Provavelmente, o problema já existia, mas estava todo mundo “em festa”, o dinheiro rodava. Quando a escassez aperta, um sócio começa a culpar o outro.
Contabilidade – E qual é a incidência dessas divergências nos casos que o senhor acompanha?
Fernandes Junior – Oito a cada dez casos. Quando os sócios percebem que estão em dificuldade e precisam se unir para superar a crise, isto é muito importante. O advogado vai apresentar soluções, mas o empresário tem de estar aberto a sugestões. Não adianta ir ao médico, ouvir as recomendações e não fazer nada. É essencial que os gestores aceitem e que contemporizem os problemas societários para superarem juntos a crise.
Contabilidade – Os empresários seguem as soluções indicadas pelos advogados?
Fernandes Junior – É uma pergunta difícil porque alguns seguem, mas outros não. Empresário, por natureza, é um sonhador, por isso é um empreendedor. Muitas vezes espera que venha um sócio, alguém que queira comprar a empresa. Ele precisa ter consciência de que essa atitude faz parte de um planejamento. Por menor que seja a crise, é importante buscar um especialista para diagnosticar o que está ocorrendo, se é problema de gestão, de dívidas ou de produto. A partir daí, pode-se ver os medicamentos e em que medida devem ministrados.
Contabilidade – O repasse de informações é feito com profundidade e a contabilidade é aberta sem subterfúgios?
Fernandes Junior – A gente parte do pressuposto de que uma empresa que busca a recuperação está em real crise, que não usará o instrumento para fraudar credores. A legislação é pesada nesses casos. Um processo de recuperação tem de ter bons profissionais, com expertise para fazer o diagnóstico da operação, além de juízes experientes. Por exemplo, uma das dificuldades é atrair eventuais interessados em comprar o ativo ou trazer dinheiro novo ao negócio. Por isso, é tão importante que quem estiver envolvido dê transparência aos números. Uma das exigências da lei é que o administrador judicial apresente mensalmente o relatório de atividades. É uma forma de mostrar ao magistrado do processo e credores o que está acontecendo para dar seguimento à atividade.
Contabilidade – Já vimos casos em que empresas estavam em recuperação e aí surge o pedido de falência, com impacto aos empregos. O que tem de pesar nesta hora: questões objetivas e técnicas ou o olhar social é importante?
Fernandes Junior – Depois que há o ingresso do pedido de recuperação e deferimento do processamento pelo juiz, não pode a qualquer momento decretar a falência. A empresa já se expôs ao mercado ao ingressar com a medida e precisa renegociar dívidas. A lei lista as causas para a convulação automática (conversão de recuperação em falência), como não apresentar plano ou ele ser rejeitado pelos credores. É importante que todos os envolvidos tenham consciência da função social da empresa. O grande espírito da lei é o da preservação do negócio, que inclui os empregos. Se for uma empresa em Porto Alegre, talvez não haja tanto impacto a falência, mas no interior, e temos casos de recuperações como da Intecnial e Comil, com grande peso nas localidades onde estão. O fechamento pode quebrar uma cidade! Claro, há casos em que a empresa busca o recurso (falência) pois já em uma situação muito delicada.
Contabilidade – Qual é a estatística de empresas que conseguem recuperar e sair do processo?
Fernandes Junior – Diria que 50% dos casos têm sucesso, mas a questão é o tempo que usam esse recurso. O mercado está mais aberto hoje, como os bancos que representam os maiores volumes de passivos, à negociação extrajudicial para reestruturar as dívidas. Os empresários começaram a usar mais esse instrumento, pois a via judicial gera transtornos. As instituições financeiras passaram, então, a chamar devedores para conversar, oferecendo mais prazo para alongar passivo e até taxas menores. Os bancos preferem negociar do que enfrentar um processo longo na Justiça.
Contabilidade – O fato da alienação fiduciária não ser alcançada pelo processo acelerou isso?
Fernandes Junior – A lei impede desde 2017 que alguns créditos como os da alienação fiduciária sejam incluídos na recuperação judicial. Por isso, os bancos quase não usam mais a garantia real nos contratos, justamente para não correr risco em eventual processo judicial. Mas o impacto é grande e é alvo hoje de discussões em institutos especializados. Tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei 10.220, que muda a atual legislação e traz inovações importantes, muitas fruto da jurisprudência desde a vigência da nova lei de recuperações e falências, que é de 2005. Mas é importante advertir que as propostas do texto não resolvem todo o problema.
Contabilidade – O que ficou de fora?
Fernandes Junior – Se uma empresa está em dificuldades, todos os credores têm de ser submetidos ao processo. Tem de mexer na lei para que todos os créditos entrem. Justamente os créditos de alienação fiduciária não entraram no PL. O projeto traz outro problema. Os débitos tributários não estão também sujeitos à recuperação e deveriam ser incluídos. E não estão porque o fisco quis que ficassem fora. Além de excluir tributos, o PL dá super poderes para a Receita Federal pedir a falência da empresa. Por outro lado, a proposta amplia mais o alcance do instrumento, acrescentando produtores rurais entre os credores. Acho que PL não está maduro, pois foi construído no final do governo de Michel Temer para dar mais força ao fisco. Uma proposta boa é acelerar ainda mais os processos de falência, pois hoje há casos de 20, 30 anos de tramitação. No decreto-lei antigo, por exemplo, primeiro era formado o quadro de credores para, só depois, vender os bens, o que leva tempo, de quatro a cinco anos. E quando se vai vender, os ativos já perderam valor ou se deterioraram. Com a lei nova, após a decretação da falência, vende-se os bens para fazer caixa a ser gerido pela massa falida, para depois se formar o quatro de credores. O PL que tramita cria mecanismos para tornar mais rápido esse procedimento. Um exemplo é a venda de imóvel em leilão, que pode ser impugnada. Se passar o PL, pode até impugnar a venda, mas antes o valor é depositado. Outra inovação é a obrigação do administrador judicial de dar mais transparência às informações, como ter site com a evolução e dados do processo.
Contabilidade – O senhor atua nos dois lados, ora como administrador judicial, ora como assessor jurídico das empresas em recuperação. Como é estar no outro lado lidando na defesa de quem busca o instrumento?
Fernandes Junior – Ainda existe um problema cultural em relação à recuperação. Mas é interessante que, quando entramos no processo, fazemos o diagnóstico e montamos o plano, 99,9% dos empresários dizem: ‘Bah, porque não fiz isto antes, porque não tomei estas medidas antes’. Eles veem que é um mecanismo eficaz e que, se a doença se agravar, mais dificuldades terão. Então, quanto antes eles buscarem tratamento melhor.
Contabilidade – A exposição gerada pelo processo atrapalha?
Fernandes Junior – Se atrapalhar é muito mais por desconhecimento, pois a visão geral é que, se está em recuperação judicial, é porque a empresa está falida. Mas não é nada disso. Não está falida, mas em processo de reestruturação. O empresário tem de abrir o coração (da empresa) e dar transparência a tudo. Se os credores identificarem que a empresa é viável e que a proposta de pagamento é satisfatória para os dois lados, eles vão dar seguimento ao negócio. Tem de mostrar a realidade e, em contrapartida, o que pode ser feito. Se o processo para recuperação for sério e transparente com os credores e o juiz, a chance de sucesso é muito grande.
Contabilidade – Como detectar que é a hora de analisar este instrumento?
Fernandes Junior – Normalmente, o empresário começa a perceber o problema quando surge dificuldades de caixa. Mas muitas vezes a luz amarela tem de ser acesa a partir do momento em que o negócio em si não oferece uma margem tão boa como tinha ou deveria ter. Muitas vezes se percebe que a concorrência é grande, a empresa está muito alavancada, e, para conseguir se manter no mercado, acaba vendendo com margem muito baixa ou até com prejuízo, para fazer caixa e girar produtos. O melhor feeling é o do empresário. A partir do momento em que ele detecta problemas no dia a dia já deve buscar um especialista para fazer um diagnóstico.
Contabilidade – Quais medidas podem ser acionadas para ajudar empresas a reverter as dificuldades?
Fernandes Junior – Duas mudanças seriam bem-vindas e importantes. A primeira é criar incentivo para atrair aporte de dinheiro novo para fomentar empresas em recuperação judicial. O recurso injetado teria de ter garantias efetivas de prioridade sobre os pagamentos frente aos outros credores. A lei brasileira não tem regras claras para este tipo de financiador, que é muito importante para ingresso de dinheiro novo durante a restruturação empresarial. Nos Estados Unidos, por exemplo, quem investe em uma empresa nessa condição recebe mais rápido o que investiu. A segunda medida é encontrar uma solução para os débitos tributários, como melhores condições de pagamento, que hoje é limitado a 84 parcelas, o que é muito pouco para quitar os passivos. A maior parte dos débitos é com bancos e com tributos.
Fonte: Jornal do Comércio