O risco forte de recessão
A situação está difícil, o mundo atravessa uma crise de duração indeterminada e o Brasil vive claramente um risco seríssimo de recessão, hipótese admitida em relatórios elaborados pelos maiores bancos do País. O complicador do quadro é o ajuste fiscal baixado pelo governo em dezembro, complementado na segunda-feira 19 com o aumento de impostos sobre combustíveis, crédito ao consumidor e importações e mudanças no Imposto Sobre Produtos Industrializados para o setor de cosméticos.
Ninguém discute a necessidade de um ajuste, mas esse pacote fiscal, especificamente, pode ter consequências graves para a sociedade. Cortes pretensamente seletivos retirarão um total previsto de, aproximadamente, 80 bilhões de reais de uma economia estagnada, em meio a um ambiente internacional desfavorável e a uma concentração de renda inibidora do desenvolvimento, no mundo e no Brasil. Não se sabe como o segundo governo Dilma Rousseff imagina atingir o objetivo pretendido com restrição do crédito de longo prazo para as empresas concedido pelo BNDES, anunciado em rodada anterior, e contração simultânea do crédito ao consumidor. O aumento do investimento público seria a resposta correta, mas nisso não se fala. Todas as fichas são colocadas na esperada retomada do ânimo empresarial, a partir de iniciativas aparentemente contraditórias com esse objetivo.
Os apertos de crédito, acentuados pelo aumento da taxa de juros em meio ponto porcentual, para 12,25%, na quinta-feira 22, a terceira elevação do segundo mandato de Dilma, agravam a situação periclitante da indústria instalada no País, desfigurada em 30 anos de crises, políticas equivocadas e desconhecimento quase absoluto, pelos diversos governos do período, do papel determinante do setor na trajetória dos países avançados ao Norte e dos emergentes bem-sucedidos no Oriente.
As crises nacionais da energia e da água, geradoras de incertezas adicionais e da postergação de investimentos, agravam a situação do País e o tornam mais vulnerável a um ajuste fiscal que atinge em cheio as parcelas mais frágeis da sociedade. As restrições ao crédito afetam negativamente investimentos e empregos, e as reduções de direitos trabalhistas e sociais diminuirão o socorro às camadas desprotegidas da população e aos desempregados, um contingente que já começa a aumentar, como mostram as mais de 12 mil demissões nas empresas fornecedoras da Petrobras, esta em crise profunda, e as centenas de dispensas no setor automobilístico.
Na busca de explicações para a guinada do segundo governo Dilma em relação à política econômica dos três mandatos anteriores, além da hipótese de capitulação pura e simples, surgem pistas em alguns pronunciamentos da presidenta e do ministro da Fazenda, Joaquim Levy. Em seu discurso de posse, no dia 5 deste mês, por cinco vezes ele condenou “o Estado patrimonialista”. Em duas das menções remeteu à alusão ao tema feita pela presidenta Dilma Rousseff, no seu discurso de diplomação, em 18 de dezembro. “O sistema patrimonialista de poder, que atravessou séculos e séculos da nossa história, nos deixa uma herança nefasta, cujo traço mais marcante é, ainda, a não dissolução plena dos laços nocivos entre o que é público e o que é privado”, verberou Dilma.
A referência, pelo ministro, ao patrimonialismo e à “análise formidável” da questão por Raymundo Faoro foi entendida como uma tentativa de atenuar a marca neoliberal do seu currículo e justificar a sua presença em um governo do PT. Aparentemente, fez uma apropriação indevida, porque direcionada à condenação do “Estado centralizador” criador de incentivos, subsídios e favorecimentos a determinados setores da economia. Tal reprovação, sabe-se, é a outra face da apologia ao mercado e às suas virtudes, as existentes e as imaginárias também.
Faoro percebia uma convergência entre o patrimonialismo e o capitalismo. “A realidade econômica, com o advento da economia monetária e a ascendência do mercado nas relações de troca, dará a expressão completa” ao fenômeno do Estado patrimonialista, analisa Faoro em Os Donos do Poder. Essa convergência inclui necessariamente o papel centralizador do Estado no capitalismo. Não há, mostra sobejamente a história econômica, nenhum país industrializado ou emergente bem-sucedido que tenha prescindido, na sua ascensão, de um Estado forte, coordenador da economia e pródigo em subsídios e protecionismo à indústria, à agricultura e ao comércio.
Faoro baseou sua análise sobre os Estados português e brasileiro nos estudos acerca do patrimonialismo feitos por Max Weber. As interpretações posteriores, no País, do grande sociólogo alemão, em regra são problemáticas. “No Brasil, a influência do pensamento weberiano é dominada pela leitura liberal apologética. É de Weber que se retira a autoridade para a legitimação da noção de patrimonialismo, para indicar uma suposta ação parasitária do Estado e de sua elite sobre a sociedade”, aponta o professor de sociologia da Universidade Federal de Juiz de Fora Jessé de Souza, organizador do livro A Atualidade de Max Weber. A quem interessa, pergunta Souza, “demonizar o Estado, pleitear o Estado mínimo, criticar a incipiente assistência social estatal e, em suma, reduzir os interesses da sociedade aos interesses da reprodução do mercado? O que dizer do empresariado brasileiro, especialmente o paulista, principal beneficiário do processo de industrialização nacional financiado pelo Estado interventor desde Vargas? Ele foi o que mais ganhou com o suposto Estado patrimonial brasileiro”.
Carta Capital