Cade, licenciamentos e a cesta básica
O tratamento antitruste dos contratos de licenciamento de tecnologia ganhou os holofotes recentemente por conta das divergências de entendimentos dentro do próprio Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), nosso órgão de defesa da concorrência. Enquanto o superintendente-geral do Cade e alguns conselheiros entendem que tais contratos sequer deveriam passar pelo órgão, outros entendem que a notificação deve sim ser obrigatória, só podendo o contrato ter eficácia após o aval do órgão antitruste.
Os contratos sob análise no Cade – e que serão possivelmente decididos ainda neste mês – são licenciamentos da empresa Monsanto versando sobre tecnologias presentes em sementes de soja resistentes ao herbicida glifosato. Mas representarão importante precedente para contratos semelhantes de licenciamento presentes nos mais variados setores de atividades e que afetam os mais diversos cultivos no que tange à agricultura. Não se está falando, portanto, de algo abstrato, com impacto pequeno sobre a população. A propriedade intelectual (PI) e seus licenciamentos não estão mais, como outrora, adstritos a setores de novas tecnologias e ao farmacêutico. A iminente decisão do Cade pode, portanto, afetar pesadamente não somente os preços dos softwares e de remédios no futuro, mas também os dos alimentos mais básicos, assim como o do algodão e por conseguinte dos itens de vestuário, e por aí vai.
O contrato de licenciamento é uma espécie de aluguel, permitindo a exploração por outrem de determinada PI. Sua particularidade é que a PI é não rival, ou seja, seu uso por alguém não diminui a disponibilidade daquele bem para terceiros. Isso implica que o dono pode ele próprio explorar a PI licenciada ou ainda licenciar para terceiros – na ausência no contrato de cláusula de não concorrência ou de exclusividade, respectivamente.
Historicamente, o Cade procedia à análise superficial e burocrática dos contratos de licenciamento
Não há dúvidas que o licenciamento permite a combinação de insumos produtivos complementares, aumentando o leque de produtos disponíveis – o que eleva o bem-estar da sociedade. Não se deve, todavia, deixar de atentar para a possibilidade de se desvirtuar este tipo de contrato, transformando-o em poderoso instrumento de dominação de mercados. Tanto para a prática da monopolização (individual) por parte de uma empresa, quanto para seu uso como facilitador de práticas concertadas ou colusivas.
O Cade historicamente procedia a uma análise superficial e burocrática dos contratos de licenciamento. Desde sempre e até 2010, aprovava-se sem restrições qualquer contrato de licenciamento sem cláusula de não concorrência ou de exclusividade.
Como se não bastasse, em março de 2010 o Cade decidiu pelo não conhecimento de um contrato de licenciamento de tecnologia envolvendo a empresa Monsanto, bem semelhante aos agora em discussão no órgão. Decidiu novamente não conhecer em outro caso semelhante em outubro daquele ano. Não conhecer é declarar-se incompetente para analisar a questão, é dizer que aquele contrato não precisaria passar pelo órgão. Dali até 23 de abril de 2012, segundo pesquisa feita no site do Cade, nenhum licenciamento foi notificado pela Monsanto, prática até então corriqueira da empresa.
Em 30 de maio de 2012 entrou em vigor a nova lei antitruste brasileira (Lei nº 12.529/11), que traz o dever de notificação de “contrato associativo” (art. 90, IV), ainda a ser regulamentado. Na dúvida – também conhecida como insegurança jurídica – a Monsanto voltou a notificar diversos contratos de licenciamento, todos sem cláusula de exclusividade ou não concorrência. A recém-criada Superintendência do Cade vinha recomendando a aprovação sem restrições (por rito sumário) nesses casos, e o Tribunal do órgão vinha concordando, até que a Superintendência mudou de postura, recomendando então o não conhecimento.
Cabendo agora ao Tribunal do Cade estabelecer o seu entendimento, surgiram as divergências entre os seus membros, os conselheiros. De toda forma, cabe salientar que tanto a análise formalista trivial, presente até 2010 e que parecia ter retornado agora com a nova lei, quanto o não conhecimento contrariam as boas práticas internacionais. Carece nesses casos conhecer e analisar tais contratos a fundo, e segundo a regra da razão (i.e. sobrepesando risco antitruste e benefícios), uma vez definidos mercados relevantes distintos de produto, de tecnologia e de inovação.
O caso da Monsanto é apenas um exemplo, com possíveis impactos nos preços dos alimentos mais básicos, como milho, trigo e soja – fato já alardeado na literatura internacional. Conforme apontado, a propriedade intelectual está presente nos mais diversos setores e merece tratamento antitruste adequado, sob pena de onerar a população em geral. O Cade, agora com nova composição e estrutura de trabalho, tem nas mãos uma grande oportunidade de desfazer um grave equívoco de seu passado recente. Alguns erros não concedem segunda chance, este sim. Conhecer da operação já é um avanço face ao imenso retrocesso do não conhecimento. Cabe torcer para que o órgão vá além e faça uma verdadeira revolução no tratamento de tema tão importante.
Rafael Pinho Senra de Morais é professor adjunto da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FCE-UERJ), PhD em Economia pela Toulouse School of Economics e bacharel em Direito pela UERJ