A tributação brasileira sobre os pagamentos de serviços técnicos ao exterior
A tributação brasileira sobre os pagamentos de serviços técnicos ao exterior: O que muda, na prática, após a edição do Parecer PGFN/CAT nº 2.363/2013 e do recente ADI nº 5/2014?
1 – Introdução
Em 6 de dezembro de 2013, foi editado o Parecer da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional – PGFN/CAT nº 2.363 (“Parecer PGFN/CAT nº 2.363/2013”), que, tendo por base a Nota COSIT nº 23/2013 da Secretaria da Receita Federal do Brasil (SRFB), expressa e consolida a nova opinião oficial das autoridades fiscais brasileiras acerca do tratamento tributário dos rendimentos oriundos da prestação de serviços técnicos e de assistência técnica sem transferência de tecnologia (doravante, simplesmente “serviços técnicos”) (01) nos tratados internacionais para evitar a bitributação da renda celebrados pelo Brasil.
Em apertada síntese, de acordo com o novo posicionamento oficial do Fisco brasileiro, tais remessas ao exterior não deveriam mais ser classificadas nos artigos de “rendimentos não expressamente mencionados” (02) dos tratados, passando, portanto, a enquadrar-se nos artigos 7º, 12 ou 14, a depender do caso específico.
No último dia 20 de junho de 2014, foi publicado oAto Declaratório Interpretativo da SRFB nº 5/2014(“ADI nº 5/2014”), o qual, além de revogar oAto Declaratório Normativo COSIT nº 1/2000da SRFB (“ADN COSIT nº 1/2000”), reitera o entendimento do Parecer PGFN/CAT nº 2.363/2013 (03).
A questão da competência para tributar as remessas ao exterior por serviços técnicos, se do Estado da residência do prestador de serviço (“Estado da residência”) ou do Estado onde se localiza o tomador dos serviços e a partir do qual, na maioria dos casos, o pagamento será realizado (“Estado da fonte”), é alvo de grandes discussões no âmbito da tributação internacional.
No Brasil, a questão ganha maior relevância diante da reiterada posição em absolutamente privilegiar a fonte financeira do pagamento como elemento de conexão para legitimar a tributação de serviços, enfraquecendo, por completo, o conceito de estabelecimento permanente/base fixa, este, sim, central, no âmbito da Convenção Modelo da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (“CM-OCDE”) (04).
Apesar de o Brasil não ser membro da OCDE, a porção majoritária de seus tratados internacionais para evitar a bitributação da renda segue a estrutura padrão da CM-OCDE, centrada no artigo 7º (“lucro de empresas”), segundo o qual o Estado da residência tem a competência exclusiva para tributação dos fluxos internacionais de pagamentos, exceto se (i) o prestador de serviços estrangeiro mantiver um estabelecimento permanente no Estado da fonte, ou (ii) se a natureza do pagamento se encaixar numa das hipóteses expressamente previstas nos demais artigos da CM-OCDE (destacando-se os artigos 10 – dividendos, 11 – juros e 12 – royalties), quando então o Estado da fonte pode tributar os referidos rendimentos dentro dos limites também previstos nesses mesmos artigos (normalmente entre 10% e 15%).
No atual contexto brasileiro, a edição do Parecer PGFN/CAT nº 2.363/2013, combinada com o recenteADI nº 5/2014, representa um grande avanço no reconhecimento da prevalência dos tratados internacionais para evitar a bitributação da renda em relação à legislação interna, seja pelo princípio da especialidade, que norteia a aplicação doartigo 98 do Código Tributário Nacional, seja pela compreensão de que teriam os diplomas escopos de aplicação diversos, não havendo entre eles conflito.
No entanto, ainda que o Parecer PGFN/CAT nº 2.363/2013 e oADI nº 5/2014apontem para uma aparente renúncia do Fisco federal em defender a tributação na fonte das remessas ao exterior por serviços técnicos, tal conclusão deve ser relativizada, em função das ressalvas neles contidas e na Nota COSIT nº 23/2013 sobre as disposições específicas dos tratados firmados pelo Brasil, mais especificamente quanto à aplicação dos artigos 12 e 14 desses acordos a cada um dos casos concretos.
Ou seja, para a infelicidade das empresas brasileiras que contratam serviços técnicos no exterior, na prática, pouca coisa muda. Confira-se abaixo, em maiores detalhes.
2 – Breves considerações sobre as discussões em âmbito internacional
A questão da competência para tributação de remessas internacionais para pagamento de serviços técnicos insere-se na questão mais ampla da disputa “Estado da fonte versus Estado da residência”, para tributar a prestação internacional de serviços.
Esse debate vem sendo travado há algum tempo, no âmbito da OCDE, como resultado de um pleito histórico dos países importadores de serviços (na sua maioria, menos desenvolvidos), para reconhecimento da competência do Estado da fonte para tributar os pagamentos sob esse conceito.
Conforme já mencionado brevemente acima, a CM-OCDE reconhece que esses pagamentos estão incluídos no conceito de “lucro de empresas”, tratado no artigo 7º dos acordos e que, portanto, poderiam ser tributados pelo Estado da fonte somente se houver um estabelecimento permanente ali localizado e apenas na exata medida em que os lucros sejam atribuídos a esse estabelecimento permanente.
Em outras palavras: a OCDE, como regra geral, defende os interesses dos Estados da residência dos exportadores de serviços (em sua maioria, mais ricos/desenvolvidos) e busca evitar qualquer tributação na fonte, exceto se caracterizada uma conexão (ou “enraizamento”) maior com o Estado da fonte, através de um estabelecimento permanente ali localizado.
Especificamente em relação aos serviços técnicos, existe um fator adicional a ser considerado na análise da competência para tributação, pois as remessas sob esse conceito envolvem não apenas o pagamento pela prestação de um serviço, mas, também, em muitas das vezes, a remuneração pela transferência de tecnologia envolvida (know-how).
Assim, os Estados da fonte importadores de serviços e de tecnologia (menos desenvolvidos) normalmente defendem a aproximação desses rendimentos com o conceito de royalties, previsto no artigo 12 dos tratados (05), de forma a permitir a tributação na fonte. Ou seja, é frequente a adoção de uma redação no artigo 12 ou nos protocolos aos tratados internacionais no sentido de ampliar a competência tributária do Estado da fonte.
Trata-se, por conseguinte, de uma análise casuística de cada um dos tratados internacionais para evitar a bitributação da renda firmados entre determinados países.
Conforme se verá a seguir, o Brasil, seja por meio de seus tratados para evitar a bitributação da renda seja por meio de sua legislação interna, adota com firmeza a posição dos países importadores de tecnologia e serviços, no sentido de garantir ao máximo a tributação na fonte das remessas internacionais por serviços técnicos e pela transferência de qualquer forma de tecnologia. Vejamos.
3 – O ADN COSIT nº 1/2000 e o caso COPESUL
Em 5 de janeiro de 2000, foi editado oADN COSIT nº 1/2000, por meio do qual a SRFB determinou que os rendimentos, pagos por fonte brasileira, pela prestação de serviços técnicos e de assistência técnica sem transferência de tecnologia, estariam classificados no artigo de “rendimentos não expressamente mencionados” nos acordos para evitar a bitributação da renda celebrados pelo Brasil (06), legitimando, portanto, a irrestrita tributação brasileira na fonte.
Ainda de acordo com oADN COSIT nº 1/2000, para confirmar se determinado serviço técnico envolveria transferência de tecnologia, seria necessário verificar se os respectivos contratos estariam sujeitos à averbação ou registro no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) e no Banco Central do Brasil (BACEN).
Importante considerar que, de acordo com a redação dos artigos 21 ou 22 dos tratados firmados pelo Brasil, os rendimentos enquadrados nesse dispositivo são passíveis de tributação tanto no Estado de residência quanto no Estado da fonte. Cabe ressaltar que no caso do Estado da fonte, não há nenhuma limitação de alíquota. A redação adotada pelo Brasil em relação a esse artigo diverge diametralmente daquela prevista na CM-OCDE, que estabelece que os rendimentos não expressamente mencionados nos demais artigos apenas podem ser tributados pelo Estado da residência.
Assim, com base noADN COSIT nº 1/2000, as remessas sob o conceito de pagamento de serviços técnicos sem transferência de tecnologia estariam sujeitas ao tratamento previsto noartigo 685, inc. II, alínea “a”, do Regulamento do Imposto de Renda, aprovado peloDecreto nº 3.000/1999, que estabelece a retenção na fonte de 25% de Imposto de Renda em relação a esses pagamentos.
A contrário senso, se caracterizada a transferência de tecnologia através do registro ou averbação do contrato no INPI, o rendimento dele decorrente então se classificaria nos artigos 12 (“royalties“) dos tratados para evitar a bitributação da renda, legitimando, também, a tributação brasileira na fonte, porém limitada a alíquotas que variam entre 10% e 15%, segundo os respectivos tratados.
OADN COSIT nº 1/2000é alvo de intensas discussões em âmbito doutrinário e judicial no Brasil, por adotar, ao mesmo tempo, uma interpretação ampliativa do artigo 21 e restritiva do artigo 7º dos tratados.
Em âmbito judicial, o caso de maior repercussão até hoje foi o denominado “COPESUL”, do Recurso Especial nº 1.161.467/RS, julgado pela Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em 17 de maio de 2012, sob a relatoria do Ministro Castro Meira.
Mantendo o entendimento manifestado no acórdão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, no julgamento do recurso de apelação do caso, os Ministros do STJ afastaram a aplicação doADN COSIT nº1/2000em relação às remessas para pagamentos de serviços técnicos do Brasil para o Canadá e para a Alemanha, sob o entendimento de que esses rendimentos, por não envolverem a transferência de tecnologia, estariam enquadrados no artigo 7º dos tratados celebrados com esses países, em detrimento do artigo 21, tudo isto em respeito ao princípio da especialidade.
A decisão do Caso COPESUL vem sendo aplicada em diversos casos pelos Tribunais Regionais Federais e Juízos Federais de 1ª instância brasileiros, nos quais se discute a tributação de remessas de serviços técnicos, bem como em relação às remessas brasileiras sob outros títulos que não envolvam transferência de tecnologia, como de serviços não técnicos, por exemplo.
Nesse sentido, destaca-se o recente julgamento da Apelação Cível nº 0058303-05.2011.4.01.3800/MG, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, em que a decisão do Caso COPESUL foi invocada para afastar a tributação na fonte de remessas a título de “custeio da obra de construção do Museu do Futebol Clube do Porto e locação de espaços publicitários” (telas eletrônicas em arquibancadas, placas indicativas de substituições de atletas e aposição do nome da empresa no museu), por entender que esses pagamentos se enquadrariam no conceito de “lucro” previsto no artigo 7º do tratado firmado entre Brasil e Portugal. (07)
4 – O Parecer PGFN/CAT nº 2.363/2013 e o ADI nº 5/2014
Motivadas por um ofício do Ministério das Finanças da Finlândia, que, em razão da política brasileira de tributação de serviços técnicos, expressava a intenção daquele país de apresentar denúncia do acordo em vigor com o Brasil, a SRFB e a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional reanalisaram o posicionamento adotado noADN COSIT nº 1/2000sobre o tema da tributação na fonte dos serviços técnicos prestados por residentes no exterior.
Nesse contexto, foram editados o Parecer PGFN/CAT nº 2.363/2013, que teve como pressuposto a Nota COSIT nº 23/2013 e, por fim, oADI nº 5/2014.
A premissa básica adotada no Parecer PGFN/CAT nº 2.363/2013 para afastar a aplicação do artigo 21 dos tratados foi a de que não deveria ser empregado o conceito de “lucro real” da legislação brasileira para fins de enquadramento dos rendimentos de prestação de serviços técnicos, mas sim, o conceito de lucro previsto no artigo 7º dos tratados, que, por sua vez, seria amplo e englobaria os rendimentos de prestação de serviços. Além disso, ainda que houvesse incompatibilidade entre os conceitos de lucro da legislação interna e do tratado, valeria o princípio da especialidade, de forma que deveria prevalecer o conceito previsto no tratado.
Vejamos alguns trechos do Parecer PGFN/CAT nº 2.363/2013 que embasaram o novo entendimento das autoridades fiscais:
“É de se considerar, também, que os países signatários devem conferir aos termos pactuados a máxima efetividade possível, desde que adequados, no caso do Brasil, aos nossos ditames constitucionais. (…)
Os comentários da OCDE à Convenção Modelo esclarecem de forma bastante incisiva que o conceito de lucro tratado no art. 7º apresenta significado amplo. Vejamos a transcrição aos comentários ao parágrafo 4º do aludido artigo:
’71. Embora não se tenha considerado necessário na Convenção definir o termo ‘lucros’, deve ficar entendido, não obstante, que o termo, quando empregado neste artigo e em outras partes da Convenção, tem significado amplo, incluindo todo o rendimento auferido na condução de uma empresa. Esse significado amplo corresponde ao emprego do termo na legislação tributária da maioria dos países membros da OCDE’.
Mesmo que incompatibilidade legal houvesse entre a legislação interna e os termos do tratado, o princípio da especialidade deve reger a contenda. ” (grifos no original).
Com base em tais premissas, as conclusões do Parecer PGFN/CAT nº 2.363/2013 foram no sentido de que, como regra geral, os rendimentos oriundos da prestação de serviços técnicos estão enquadrados no conceito de “lucro de empresas”, do artigo 7º dos tratados. No entanto, caso determinado tratado trouxer disposição expressa de que os serviços técnicos são enquadrados no artigo 12, que estabelece a tributação aplicável aosroyalties, devem ser aplicadas as disposições previstas naquele artigo,in verbis:
“A conclusão acima não se aplica (…) quando, advindos de negociações entre os países signatários, houver disposição expressa nos acordos autorizando a tributação no Brasil. Ou seja, neste último caso, nas hipóteses em que os acordos internacionais ou dispositivo de protocolo autorizem a tributação no Brasil, a exemplo dos tratados e protocolos que caracterizem os valores pagos como royalties, tais serviços poderão ser submetidos ao tratamento previsto no art. 12 da Convenção Modelo – pagamento de royalties, independentemente do caráter em que a prestação do serviço foi efetuada (em caráter principal ou acessório), não incidindo, portanto, o art. 7º.”
Chama-se ainda atenção para um ponto específico, que não foi abordado expressamente no Parecer PGFN/CAT nº 2.363/2013, mas apenas na Nota COSIT nº 23/2013: além da aplicação do artigo 12 dos tratados, seria ainda necessário analisar se haveria disposição que determinasse a aplicação do artigo 14 dos tratados, antes de se aplicar o tratamento do “lucro das empresas” (artigo 7º) às remessas para pagamento de serviços técnicos e de assistência técnica. Confira-se:
“c) sob outra hipótese em que as Convenções internacionais autorizem a tributação no Brasil, nos casos de prestação de serviços técnicos de caráter profissional realizada por pessoa ou grupo de pessoas, os rendimentos de prestação de serviços técnicos deverão ser submetidos ao tratamento previsto no Artigo 14 (Profissionais Independentes), quando nele houver disposição expressa sobre atividades de caráter técnico.” (grifamos)
Assim, além da aplicação do artigo 12, sobre royalties, de acordo com a Nota COSIT nº 23/2013, haveria um segundo “filtro” para a aplicação do tratamento previsto no artigo 7º dos acordos, qual seja, o artigo 14, que trata da tributação dos serviços profissionais independentes.
Em relação ao artigo 14, é importante ressaltar que, a despeito do fato de que, desde 2000, esse artigo tenha sido excluído da CM-OCDE (08), a postura adotada pelo Brasil é a de sistematicamente incluí-lo em seus acordos de bitributação, com premissas ainda mais amplas do que aquelas fixadas pela OCDE na redação original do artigo para tributação dos rendimentos dessa natureza pelo Estado da fonte.
O ADI nº 5/2014, por sua vez, veio a esclarecer a questão da aplicação do segundo “filtro” referente ao artigo 14, além de ratificar o entendimento previsto no Parecer PGNF/CAT nº 2.363/2013 sobre a aplicação do artigo 12 dos tratados, como também revogar expressamente oADN COSIT nº 1/2000.
Em relação à aplicação do artigo 14 dos tratados, o ADI nº 5/2014 inova apenas ao estabelecer que este tratamento é aplicável em relação aos “casos de prestação de serviços técnicos e de assistência técnica relacionados com a qualificação técnica de uma pessoa ou grupo de pessoas”, sempre que o acordo ou convenção firmados pelo Brasil assim permitam.
5 – Análise das implicações práticas da edição do Parecer PGFN/CAT nº 2.363/2013 e do ADI nº 5/2014
Adotando as conclusões doADI nº 5/2014e do Parecer PGFN/CAT nº 2.363/2013, afasta-se a aplicação do artigo dos tratados que trata de “rendimentos não expressamente mencionados” em relação às remessas de pagamentos de serviços técnicos.
No entanto, a partir dessa premissa geral, aplicando-se em conjunto as conclusões do Parecer PGFN/CAT nº 2.363/2013, da Nota COSIT nº 23/2013 e doADI nº 5/2014, deve-se proceder a uma análise concreta do tratado envolvido, para determinar se são aplicáveis os artigos 12 ou 14, antes de, finalmente, classifica-los no artigo 7º.
Em relação ao primeiro “filtro”, relativo à aplicação do artigo 12, viu-se que a prática normalmente adotada pelo Brasil é classificar os rendimentos originados da prestação de serviços técnicos como royalties, independentemente de haver ou não transferência de tecnologia envolvida.
Atualmente, classificam no artigo 12, como royalties, tributáveis na fonte a alíquotas que variam entre 10% e 15%, os rendimentos oriundos de serviços técnicos e assistência técnica, independentemente de haver transferência de tecnologia, pagos no contexto dos seguintes tratados: África do Sul, Argentina, Bélgica, Canadá, Chile, China, Coréia do Sul, Dinamarca, Equador, Espanha, Filipinas, Hungria, Índia, Israel, Itália, Luxemburgo, México, Noruega, Países Baixos, Peru, Portugal, República Eslovaca, República Tcheca, Turquia e Ucrânia.
Por exclusão, os únicos tratados brasileiros que não adotaram a classificação de royalties para os serviços técnicos são os firmados com a Áustria, a Finlândia, a França, o Japão e a Suécia. Portanto, apenas em relação a esse último grupo de países não seria aplicável o tratamento previsto no artigo 12, nas remessas para pagamento de serviços técnicos, com ou sem transferência de tecnologia.
Em relação ao segundo “filtro” do artigo 14, desde a celebração do acordo com a Bélgica em 1972, a prática brasileira tem sido a de normalmente empregar uma referência expressa a “serviços técnicos” no artigo 14(2). Os únicos tratados celebrados pelo Brasil que não contêm tal referência são os tratados com o Japão, a França, a Áustria, a China, Portugal, Israel e a Turquia.
Dessa forma, aplicando ambos os “filtros” concomitantemente, verificamos que apenas em relação aos tratados com a Áustria, a França e o Japão seria possível a plena aplicação do artigo 7º aos rendimentos de serviços técnicos sem transferência de tecnologia, uma vez que, em relação aos demais tratados celebrados pelo Brasil, seria invariavelmente aplicável o tratamento previsto no artigo 12 ou no artigo 14, legitimando, por conseguinte, a tributação brasileira na fonte.
No entanto, mesmo nos casos específicos de Áustria, França e Japão, ainda é possível encontrar resistências à aplicação do artigo 7º, a fim de dispensar a retenção de imposto de renda sobre os valores remetidos ao exterior a título de serviços técnicos.
Ainda que o Parecer PGFN nº 2.363/2013 não permita qualquer interpretação nesse sentido, na hipótese em que esses pagamentos sejam destinados a profissionais independentes, como médicos, advogados, engenheiros, dentistas e contadores, é possível deparar-se com o entendimento de que os pagamentos estariam enquadrados no artigo 14 (ou artigo 13, no caso do Japão), por se tratar de pagamento de serviço profissional independente, estando sujeitos à tributação na fonte. Neste sentido é que oADI nº 5/2014traz consigo em seu artigo 1º, inciso II, o “critério subjetivo” de qualificação técnica do prestador de serviços (pessoa ou grupo de pessoas) a fim de legitimar a tributação brasileira na fonte do serviço prestado (10).
Ao final deste tópico, cabe esclarecer que o Parecer PGFN nº 2.363/2013 e oADI nº 5/2014trouxeram inovações exclusivamente em relação à incidência do Imposto de Renda Retido na Fonte (“IRRF”) nas remessas para pagamentos de serviços técnicos ao exterior, que, por sua vez é, como regra geral, encargo passível de recuperação pelo prestador de serviços no exterior, seguindo a sistemática de crédito prevista nos tratados acordos para evitar a dupla tributação da renda firmados pelo Brasil. Note-se que não houve nenhuma alteração em relação aos demais tributos brasileiros incidentes sobre tais remessas ao exterior – a saber, contribuição ao PIS, COFINS, CIDE – Royalties, ISS e IOF -, os quais nunca são creditáveis/recuperáveis no exterior e representam, portanto, o verdadeiro encargo econômico embutido nessas transações internacionais.
6 – Conclusões
A edição do Parecer PGFN/CAT nº 2.363/2013, seguida do recenteADI nº 5/2014representa grande evolução à política brasileira de respeito aos tratados para evitar a dupla tributação da renda, uma vez que se revoga o entendimento constante doADN COSIT nº1/2000, de que os rendimentos desse tipo deveriam ser enquadrados no artigo de “rendimentos não expressamente mencionados” dos tratados.
Conforme reconhecido pelas autoridades fiscais, essa interpretação tomava como base conceitos da legislação interna brasileira referentes à apuração do lucro real, inaplicáveis ao contexto internacional, desafiando a melhor interpretação dos artigos 7º e 21 dos acordos para evitar a dupla tributação da renda, bem como a aplicação do artigo 98, do Código Tributário Nacional, em conformidade com o princípio da especialidade.
Por outro lado, na prática, a edição do Parecer PGFN/CAT nº 2.363/2013 e doADI nº 5/2014não representou grande mudança no que se refere à efetiva sujeição das remessas internacionais sob esse conceito à tributação na fonte brasileira.
Ainda que as autoridades fiscais tenham adotado a premissa geral de que as remessas para pagamento de serviços técnicos sem transferência de tecnologia enquadram-se no artigo 7º, dos acordos, na prática, as ressalvas de que, inicialmente, devem ser analisadas as aplicações dos artigos sobre royalties (artigo 12) e sobre serviços profissionais independentes (artigo 14), torna o âmbito de aplicação do artigo 7º muito restrito.
Afinal, como se analisou, o Brasil tradicionalmente adota a posição normalmente empregada pelos países importadores de serviços e de tecnologia, de forma a garantir a tributação na fonte desses rendimentos, sujeitando os serviços técnicos à aplicação não apenas do artigo 12, como também do artigo 14 dos tratados para evitar a bitributação da renda.
Dessa forma, na grande maioria dos casos envolvendo remessas internacionais para pagamentos de serviços técnicos, continuará sendo aplicada a retenção brasileira de imposto de renda na fonte, exceto para residentes na Áustria, na Finlândia, na França, no Japão ou na Suécia.
As convenções celebradas com a Áustria, a França e o Japão passam incólumes aos dois “filtros” dos artigos 12 e 14. Por outro lado, na aplicação dos tratados com a Finlândia e a Suécia encontra-se mais dificuldade para a transposição do segundo “filtro” do artigo 14, em razão da inclusão da expressão “técnicos” em seus respectivos textos.
Não obstante, em ambos os casos, o aplicador da norma tributária brasileira ainda assim deverá confirmar se não está presente o “critério subjetivo” da qualificação técnica do prestador do serviço (pessoa ou grupo de pessoas) como profissional independente (advogado, médico, economista etc.), conforme reiterado peloartigo 1º, inciso II, do ADI nº 5/2014.
Por fim, para que o presente artigo não se encerre com um tom tão negativista, cabe consignar que o reforço conceitual da prevalência do artigo 7º sobre o artigo 21 dos tratados servirá como elemento argumentativo muito positivo nas disputas judiciais que visem afastar a tributação brasileira nos pagamentos ao exterior por serviços de natureza não técnica, que, segundo normativa interna, se caracterizam, em linhas gerais, como aqueles que não dependem de conhecimentos técnicos especializados e que trazem consigo menor valor agregado em transações internacionais.
Notas
(01) Existe grande polêmica em relação à definição dos conceitos de “serviços técnicos” e de “assistência técnica” e da transferência de tecnologia envolvida na prestação desses serviços. No Brasil, a definição de serviços técnicos e de assistência técnica é feita por meio do artigo 17, inc. II, da Instrução Normativa nº 1.455/2014, que estabelece o seguinte: (i) serviços técnicos: “execução de serviço que dependa de conhecimentos técnicos especializados ou que envolva assistência administrativa ou prestação de consultoria, realizado por profissionais independentes ou com vínculo empregatício ou, ainda, decorrente de estruturas automatizadas com claro conteúdo tecnológico” (artigo 17, inc. II, alínea ‘a’); e (ii) assistência técnica: “assessoria permanente prestada pela cedente de processo ou fórmula secreta à concessionária, mediante técnicos, desenhos, estudos, instruções enviadas ao País e outros serviços semelhantes, os quais possibilitem a efetiva utilização do processo ou fórmula cedido” (artigo 17, inc. II, alínea ‘b’).
(02) Artigos 21 ou 22, a depender do tratado especificamente firmado pelo Brasil.
(03) Note-se que o Parecer PGFN/CAT nº 2.363/2013 trata apenas de serviços técnicos e de assistência técnica sem transferência de tecnologia, ao passo que o ADI nº 5/2014 contempla os serviços técnicos e de assistência técnica com ou sem transferência de tecnologia.
(04) A Convenção Modelo Relativa a Impostos Sobre a Renda e o Capital, editada pela OCDE, é um parâmetro não vinculante utilizado pela maioria dos países membros e não membros da OCDE na redação de tratados internacionais para evitar a bitributação da renda. A primeira Convenção Modelo da OCDE foi editada em 1963, e sofreu alterações em 1994, 1995, 1997, 2000, 2003, 2005, 2008 e, finalmente, em 2010, versão que se encontra atualmente em vigor.
(05) De acordo com o artigo 12(2) da CM-OCDE de 2010:“The term ‘royalties’ (.) means payments of any kind received as a consideration for the use of, or the right to use, any copyright of literary, artistic or scientific work including cinematograph films, any patent, trade mark, design or model, plan, secret formula or process, or for information concerning industrial, commercial or scientific experience.”
(06) A despeito do que estabelece o ADN COSIT nº 1/2000, seria impróprio referir-se a serviços de assistência técnica sem transferência de tecnologia.
(07) “TRIBUTÁRIO – PROCESSUAL CIVIL – MANDADO DE SEGURANÇA – MUSEU DO FUTEBOL CLUBE DO PORTO (CUSTEIO DA OBRA E LOCAÇÃO DE ESPAÇOS PUBLICITÁRIOS) – IRRF – REMESSAS/ENVIOS AO EXTERIOR, POR EMPRESA BRASILEIRA, AQUI SEDIADA, A SOCIEDADES PORTUGUESAS, SEM ESTABELECIMENTO NO BRASIL, DE VALORES ENQUADRÁVEIS COMO O “LUCRO” DE QUE TRATA A CONVENÇÃO/TRATADO BRASIL-PORTUGAL (DECRETO Nº 4.012/2001), CELEBRADOS PARA EVITAR BITRIBUTAÇÃO – PRECEDENTE DO STJ.(…)” (AC nº 0058303-05.2011.4.01.3800/MG, Relator Desembargador Federal Luciano Tolentino Amaral, Sétima Turma do TRF1, julgado em 8 de abril de 2014, publicado em 25 de abril de 2014).
(08) A exclusão do artigo 14 da Convenção Modelo da OCDE, a partir do ano de 2000, foi resultado das conclusões do Grupo de Estudos formado pela OCDE em 1996 para analisá-lo. De acordo com as conclusões desse: (i) em relação ao critério material de aplicação do artigo, seria muito difícil diferenciar o tipo de atividades que se enquadrariam no artigo 14 em detrimento do artigo 7º; (ii) já em relação ao critério pessoal de aplicação do artigo, não seria possível determinar se seria aplicável somente a pessoas físicas ou pessoas jurídicas e, por sua vez, nem haveria sentido distinguir o âmbito de aplicação do dispositivo com base em tal critério; (iii) ainda que reconhecendo que, teoricamente, o termo “base fixa” utilizado no artigo 14, não equivaleria ao termo “estabelecimento permanente”, empregado no artigo 7º, pois possuiria critérios menos rígidos, o Grupo de Estudos admitiu não ter encontrado nenhum exemplo prático de estabelecimentos permanentes que não fossem bases-fixas e vice-versa, de forma que não traria repercussões de ordem prática; e, por fim, (iv) não haveria relevância no fato de que o artigo 7º tratasse da tributação de lucros, ao passo que o artigo 14 tratasse da tributação de receitas.
(09) Vide, por exemplo, o Ato Declaratório Interpretativo nº 4/2006 relativo à Espanha.
Cristiani Frederico Ruschmann, Advogado
Pedro Paulo Bresciani – Advogado