A culpa é do smartphone?
Conectividade no trabalho já foi sinônimo de liberdade e produtividade. A possibilidade de uma pessoa poder se conectar a qualquer hora e em qualquer lugar chegou a ser considerada a solução perfeita para conciliar vida pessoal e trabalho.
O endeusamento do escritório móvel, que começou com os notebooks, chegou ao ápice na era do smartphone. Férias e lazer podiam ser aproveitados mesmo quando se estava envolvido em um projeto difícil.
As opiniões mudaram, segundo amplo estudo da consultoria americana Center Creative Leadership conduzido pela pesquisadora Jennifer J.Deal. “Muita gente agora acredita que a conectividade ilimitada extrapolou”, ela disse em seu artigo sobre o tema.
O principal motivo vem sendo apontado em inúmeras pesquisas – a invasão desmedida do tempo dos funcionários pelos aparelhos móveis vem causando stress, baixa produtividade e pior, perda de engajamento com o trabalho. O uso cada vez maior do sistema home office, no qual o smartphone é indispensável, faz países e empresas discutirem como achar o ponto equilíbrio.
Uma pesquisa da Universidade Erasmus, da Holanda, mostrou que o uso intensivo de smartphone fez o trabalho se infiltrar nocivamente na vida doméstica. Ficou difícil descansar e relaxar depois do expediente, disse o pesquisador Arnold Bakker, em entrevista ao jornal inglês The Guardian. Ele considerou difícil, se não impossível, manter um equilíbrio satisfatório entre vida pessoal e trabalho. Consequência? Pessoas exaustas e até cínicas em relação à vida profissional.
Uma amostra exagerada do fenômeno pode ser visto no filme “O Diabo Veste Prada”, que explora a situação até o limite no embate entre os personagens de Meryl Streep e Anne Hathaway.
Segundo especialistas, além de estar submetido à pressão da disponibilidade permanente, há outro dano causado pelas interrupções ou estímulos externos. O ato de parar e recomeçar prejudica a concentração e obriga o cérebro a um esforço maior para retomar de onde havia parado, levando à perda de eficiência e de tempo. As interrupções em excesso podem reduzir em até 30% a capacidade de execução de uma tarefa.
STRESS E STATUS
O problema com o smartphone não é só causado por executivos inconseqüentes ou empresas insensíveis. Os próprios profissionais costumam se considerar mais competentes e descolados se permanecem o tempo todo acessível e respondem de bate-pronto as mensagens, especialmente as do chefe.
Uma pesquisa do Instituto Gallup levantou que os níveis de stress em trabalhadores americanos eram proporcionais ao número de vezes em que verificavam seus smartphones fora do horário de trabalho. O comportamento foi constatado em cerca de metade dos participantes, enquanto 30% não se preocupava em conferir mensagens. Mas os pesquisadores se depararam com um paradoxo – aqueles que se sentiam estressados relataram estar mais satisfeitos com suas vidas dos que os que não ligavam. A hipótese do Gallup é que o fato de receber e enviar mensagens fora do horário de trabalho fazia estes profissionais se sentirem mais importantes.
Parecia o acordo tácito perfeito entre empresa e funcionário –‘eu dou um smartphone para você, você fica de plantão em qualquer lugar e momento e ainda pode causar uma boa impressão sendo rápido para receber e responder as mensagens’. Além dos governos, as empresas também começam a se preocupar em preservar seus funcionários dos maus chefes e também de si mesmos. Algumas criaram políticas para regular a troca interna de mensagens. Por enquanto, a reação tem sido maior no exterior.
PÉ NO FREIO
Em 2014, um acordo entre empregadores e sindicatos franceses incluiu uma cláusula prevendo a “obrigação de desligar” para os trabalhadores contratados, para protegê-los do burn out, a síndrome do esgotamento causado pelo trabalho. Na Alemanha, está sendo estudada uma legislação específica para proibir a comunicação de empregadores a seus funcionários depois de determinado horário.
A Volkswagen da Alemanha, antecipando o projeto de lei em análise no país, há alguns anos corta a conexão dos celulares de serviço meia hora após o fim do expediente e só liga na manhã seguinte. Não há opção de receber mensagens. Um sinal de que as empresas começam a reconhecer a importância de separar trabalho de vida pessoal?
Em outra empresa automobilística, a alemã BMW, a opção foi por um tipo de acordo entre chefe e funcionário baseado na confiança, para definir o tempo que o trabalho continua fora do escritório. Celular corporativo incluído. Os próprios funcionários registram as horas-extras e são pagos por elas.
No Banco do Brasil, o projeto-piloto de home office já prevê a desconexão total dos aparelhos móveis após a jornada combinada de trabalho. A tendência no Brasil ainda pode ser considerada tímida em razão da falta de regulação sobre como contabilizar as horas extras. Há uma grande apreeensão das empresas de enfrentar problemas legais.
DESPERDÍCIO DE TEMPO
Para os pesquisadores da consultoria americana Center Creative Leadership, no entanto, a culpa pelo atual ânimo dos trabalhadores não é apenas do smartphone ou do sistema home office. A raiz do problema estaria na perda de tempo causada pela gestão negligente. Eles consideram o fenômeno um efeito colateral do acúmulo de trabalho causado pela redução de custos.
Depois de ouvirem 483 executivos, gerentes e profissionais em empresas pequenas empresas e grandes multinacionais nos Estados Unidos e em 36 outros países, os pesquisadores concluíram que maioria gosta da flexibilidade no trabalho, mesmo com horas adicionais. O que eles não toleram é o desperdício de tempo. Segundo este raciocínio, os profissionais se estressam muito mais por ficarem à espera de decisões de negócios que não são tomadas do que por serem interrompidos por um telefonema em casa.
Seja vilão ou bode expiatório do mundo corporativo, o smartphone é uma realidade. Por trás das reclamações e das iniciativas para dar um pouco de ordem no cenário, existe a constatação de que os novos meios de comunicação vieram para ficar. Como tudo no mundo, o impacto sobre a vida das pessoas tem um lado positivo e um negativo. Poder ficar mais tempo com a família, por exemplo, mesmo trabalhando ou ganhar algumas horas por dia sem enfrentar trânsito. O importante é que seja encontrado um equilíbrio favorável para os dois lados.
DCI