Pressão pela reforma
Nosso sistema de representação política está se mostrando claramente insuficiente, com perigos claros para a democracia. Os parlamentares estão representando a si mesmos, defendendo seus interesses.
Os recentes descalabros do Senado e da Câmara dos Deputados, aos que se podem somar os do Executivo, tendo como símbolo o mensalão, mostram uma decadência moral que parece não conhecer limites. Os desmandos são praticamente suprapartidários, como se a capacidade de distinguir o certo do errado tivesse simplesmente desaparecido. O máximo que nossos representantes conseguem articular é: “Agi dentro da legalidade!”. Ora, que legalidade é essa que não mais discrimina o justo do injusto, o bem do mal?
Nosso sistema de representação política está se mostrando claramente insuficiente, com perigos claros para a democracia. O Poder Legislativo, teoricamente, deveria ser o mais próximo do povo, dos anseios da sociedade, por ser diretamente eleito. Ele exerce, ou deveria exercer, papel de mediação entre os cidadãos e os governos, defendendo os interesses da sociedade em seu conjunto.
Contudo, observamos que os parlamentares estão representando a si mesmos, defendendo apenas os seus próprios interesses. Quando um parlamentar chega a dizer que o pagamento de viagens de seus parentes ao exterior é uma prática comum, “que todo mundo faz”, é porque perdeu o senso da discriminação moral. Se os parlamentares perdem o sentido do ético, é porque o Senado e a Câmara estão também perdendo as suas funções. Nada mais perigoso do que uma sociedade que não se reconhece em suas instituições.
No entanto, poderíamos também dizer: “Pior do que o pior dos Senados é a ausência de Senado”, ou ainda “pior do que a pior das Câmaras de Deputados é a ausência de Câmara de Deputados”.
Se os cidadãos chegam a ter esse anseio, é porque tornou-se da maior urgência uma reforma política. O problema é aqui de monta, pois os mesmos que usufruem da decadência do sistema atual de representação política, são aqueles que deveriam fazer uma reforma, o que contraria frontalmente os seus interesses.
O paradoxo é evidente e, no meu entender, só poderá ser solucionado por meio de uma forte pressão da opinião pública, que faça ver aos seus representantes que a situação é intolerável e, por isso mesmo, não devem ser reeleitos. A reforma política é um assunto por demais sério para ficar nas mãos daqueles que não querem empreendê-la.
Uma verdadeira reforma política deverá contar com intensa participação da sociedade. Isto significa a apresentação de propostas por parte de entidades empresariais, sindicais, profissionais, que apresentem idéias no interior de uma ampla discussão. A reforma não pode ser assunto de uns poucos que no Senado, na Câmara dos Deputados ou no governo, se interessem por ela.
Os obstáculos são enormes. Se o atual governo nada fez, é porque simplesmente não tinha interesse em fazê-lo. A iniciativa, agora, é da sociedade e, de modo geral, daqueles interessados em preservar a democracia.
Entre outros pontos de uma reforma política e eleitoral, penso ser necessários os seguintes:
1. Discutir uma questão que tem sido sistematicamente negligenciada e que se encontra na raiz dos problemas atuais: o da representação populacional propriamente dita. Na situação atual, estados menos populosos estão sobrerrepresentados, enquanto estados de maior contingente populacional estão subrepresentados. Trata-se de uma anomalia das mais graves, que distorce a representação popular.
A Câmara de Deputados deveria ser constituída de parlamentares que individualmente representassem o mesmo número de cidadãos, não importa se provenientes do Amapá ou de São Paulo. Este é o princípio da representação moderna, pilar da democracia. O Senado, por seu lado, obedece ao princípio federativo e, portanto, a representação se faz por estados, o que é legítimo;
2. A questão do lobby deve ser finalmente enfrentada. Se, de um lado, é legítimo que os grupos de pressão defendam os seus interesses junto aos Poderes Executivo e Legislativo, não é menos verdadeiro que esta forma de atuação seja regulamentada, oferecendo transparência a todo o processo. Transparência significa registro dos que exercem essa função, prestação de contas e publicização dos interesses envolvidos. Aquilo que é escondido tende a ser injusto.
O problema não se reduz ao financiamento das campanhas eleitorais, mas a todo o exercício dos mandatos. Se partidos, parlamentares e governantes são financiados por entidades privadas, ONGs e sindicatos, por exemplo, a sociedade tem direito de saber o que está sendo discutido ou negociado. Se a negociação é legítima, contemplando os interesses particulares e os públicos, nada mais saudável. No entanto, se transações são feitas no escuro, é porque há algo oculto. Eis a razão por que entendo que a questão do lobby faz parte de uma agenda de reforma política e eleitoral;
3. O voto distrital deveria ser cuidadosamente apreciado. Tem ele a vantagem de aproximar o eleitor dos seus representados, na medida em que esse controle passa a ser exercido dentro de um âmbito territorial determinado, um bairro muito populoso, por exemplo, ou determinada região de um estado. A igualdade , em termos numéricos, dos cidadãos aptos a votar deveria ser cuidadosamente respeitada, de modo a evitar que a representação seja falseada por critérios escusos.
O vereador, o deputado estadual e o deputado federal não seriam representantes de si mesmos, mas de um determinado conjunto de eleitores perfeitamente delimitado. Deveriam prestar contas a eles, que são os verdadeiros detentores dos seus mandatos.
Embora tal proposta contrarie a forma existente de representação proporcional, apresenta o benefício de romper com boa parte dos vícios atuais. Sua introdução, aliás, poderia ser gradativa, de modo que sua aprovação fosse facilitada. Por exemplo, o voto distrital poderia, num primeiro momento, valer para as eleições de vereadores e deputados estaduais, passando, num segundo momento, a vigorar para deputados federais. Um pequeno grande passo estaria sendo dado.
is Lerrer Rosenfield é professor de Filosofia na UFRS
Fonte: Diário do Comércio