O ISS e a locação de bens móveis – De novo?
Em sua edição de 28 de setembro/4 de outubro de 2013, a revista The Economist apresentou uma série de problemas que têm impedido a continuidade dos avanços sociais e econômicos do Brasil nas últimas duas décadas. Entres esses problemas, destacam-se a elevadíssima carga tributária (assunto tão explorado em publicações gerais e técnicas que dispensa maiores comentários) e a complexidade do sistema tributário. Citando conhecido estudo produzido pelo Banco Mundial e pelaPricewaterhouseCoopers, a revista relata que tal complexidade chega a exigir do contribuinte brasileiro (pessoa jurídica) 2.600 horas por ano para cumprimento de obrigações tributárias, tempo bem superior à média global.
A complexidade de um sistema tributário tem diversas causas que são comuns a todos ou à maioria dos países e várias causas que decorrem das características específicas de cada país. Entre as causas específicas que, pode-se dizer, constituem especialidade brasileira está a edição desmesurada e insensata de normas constitucionais, legais e infralegais, geralmente assistemáticas, casuísticas e excessivamente complicadas, fruto ou da pressão (às vezes, indevida) de determinados grupos de interesse ou da pressão estatal (na maioria das vezes, indevida) pelo aumento excessivo de arrecadação. Dificilmente é levado em consideração o ainda atual alerta de Adam Smith, para quem: “O imposto que todo indivíduo é obrigado a pagar deve ser certo e não arbitrário. O tempo de pagamento, o modo de pagamento, o quantitativo a ser pago, tudo deve ser claro e simples para o contribuinte e para todas as outras pessoas” (Inquérito sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nações, ed. da Fundação Calouste Gulbenkian, Livro V, Capítulo II, Parte II, p. 486).
Clareza e simplicidade estão, efetivamente, em falta na legislação tributária brasileira. Os exemplos são legião. Basta mencionar a sistemática não cumulativa da contribuição ao PIS e da COFINS, confusamente prevista nas Leis nºs10.637/2002e10.833/2003(com acréscimos oriundos de diversas leis esparsas), não faltando quem sustente a inconstitucionalidade de tal sistemática por ofensa ao que vem sendo denominado de princípio da clareza das normas.
Por outro lado, continua em alta o já rotineiro fenômeno da modificação legislativa dos julgados oriundos do Poder Judiciário, pelo qual o Poder Legislativo produz norma que visa a alterar a jurisprudência dos Tribunais. A nova norma é geralmente editada após prolongado período de discussão judicial e, às vezes, até mesmo após longo período de pacificação jurisprudencial da questão que busca disciplinar. Isto torna ainda mais complexo o sistema tributário, surpreende negativamente e acaba por frustrar as legítimas expectativas dos contribuintes, em exemplo de grave insegurança jurídica que pode levar à paralisação ou à desistência de investimentos nas mais diversas áreas, com prejuízo tanto para a iniciativa privada quanto para o Estado.
Nova tentativa de modificação legislativa de jurisprudência está em curso no campo do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS), tentativa esta que não se assume como tal – ao contrário, busca “disfarçar” suas intenções – e que, se concretizada, produzirá os deletérios efeitos acima destacados. Refere-se aqui ao Projeto de Lei Complementar do Senado (PLS) nº 386/2012, de autoria do Senador Romero Jucá, que pretende alterar aLei Complementar nº 116/2003e, entre outras coisas, (re)incluir na lista de serviços sujeita àquele imposto a “locação empresarial de bens móveis”.
Como justificativa para tanto, o mencionado Projeto sustenta que o Supremo Tribunal Federal (STF) teria reconhecido, nos acórdãos proferidos nos Recursos Extraordinários nº 547.245/SC e 592.905/SC (sobretudo nos votos ali proferidos pelos Mins. Joaquim Barbosa e Eros Grau), a existência de um conceito amplo de serviço de qualquer natureza para fins de incidência do ISS, que não mais se limitaria ao conceito de obrigação de fazer e que autorizaria a incidência deste tributo sobre a locação de bens móveis.
Ocorre que não é bem esta a posição do STF acerca da incidência de ISS sobre a locação de bens móveis, o que revela que o Projeto de Lei Complementar do Senado (PLS) nº 386/2012 constitui uma tentativa “disfarçada” – e, adiante-se, inconstitucional – de alteração legislativa da jurisprudência. Para entendê-lo, é importante relembrar que a “locação de bens móveis” já constou da lista de serviços anexa à legislação nacional de regência do ISS que precedeu aLei Complementar nº 116/2003, qual seja, o Decreto-lei nº 406/1968. Na última versão de tal lista antes da promulgação daLei Complementar nº 116/2003, o item 79 sujeitava ao ISS a “locação de bens móveis, inclusive arrendamento mercantil”.
Ao se manifestar sobre o citado item 79 daquela lista de serviços em caso que envolvia a locação de guindastes, o Tribunal Pleno do STF decidiu, com base na antiquíssima distinção entre obrigação de dar e obrigação de fazer, que a prestação de serviço sujeita ao ISS se confundiria com obrigação de fazer. Obrigação de dar, como a inerente à locação de guindastes, não se sujeitaria à incidência deste imposto. Nestes termos, o STF declarou, incidentalmente, a inconstitucionalidade da expressão “locação de bens móveis” constante do item 79 da referida lista de serviços (Recurso Extraordinário nº 116.121/SP, julgado em 11 de outubro de 2000).
A partir de então, o STF proferiu inúmeras decisões no mesmo sentido, consolidando a jurisprudência sobre a matéria. A tal ponto que, quando da edição da Lei Complementar nº 116/2003, a Presidência da República vetou a inclusão do item 3.01 na lista de serviços anexa a esta lei complementar, que fazia nova menção à “locação de bens móveis”. O veto, fundado no entendimento fixado pelo STF no Recurso Extraordinário nº 116.121/SP, reconheceu a inconstitucionalidade da incidência do ISS sobre a locação de bens móveis.
Em fevereiro de 2010, o Tribunal Pleno do STF aprovou a Súmula Vinculante nº 31, na qual se lê: “É inconstitucional a incidência do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza – ISS sobre operações de locação de bens móveis”. No mesmo ano, aquele Tribunal reconheceu a repercussão geral da matéria e ratificou o entendimento de que não incide ISS sobre a locação de bens móveis (Recurso Extraordinário 626.706/SP, julgado em 8 de setembro de 2010).
Diversos precedentes no mesmo sentido continuam a ser produzidos pelo STF. Serve de exemplo decisão proferida pela Segunda Turma em fevereiro de 2013, na qual esta reconheceu, uma vez mais, a inconstitucionalidade da incidência de ISS sobre a locação de bens móveis (AgRg no RE 405.578/MG).
Constata-se assim que, ao contrário do que é dito na justificativa do Projeto de Lei Complementar do Senado (PLS) nº 386/2012, a jurisprudência do STF não admite a existência de um conceito amplo de serviço de qualquer natureza, que englobasse a locação de bens móveis e autorizasse, nestes termos, a incidência de ISS sobre esta última. E nem houve qualquer alteração na Constituição que pudesse suscitar uma mudança de posição do referido Tribunal sobre o assunto.
Os votos proferidos pelos Mins. Joaquim Barbosa e Eros Grau nos Recursos Extraordinários nº 547.245/SC e 592.905/SC não devem ser lidos fora do contexto no qual foram proferidos – uma discussão que envolvia a sujeição ou não do arrendamento mercantil (nas suas modalidades deleasingoperacional,leasingfinanceiro elease-back) ao ISS – e a eles não pode ser reconhecido efeito que não tiveram na jurisprudência, tal como pretende a justificativa ao PLS nº 386/2012. Indubitavelmente, o STF continua a entender que não é constitucionalmente admitida a cobrança de ISS sobre a locação de bens móveis.
Portanto, o Projeto de Lei Complementar do Senado (PLS) nº 386/2012 não está fundado na jurisprudência do STF. Ao menos, não no que concerne à locação de bens móveis. O que este Projeto quer é, em realidade, alterar tal jurisprudência, consolidada há mais de dez anos, reincidindo em inconstitucionalidade já reconhecida e aumentando tanto a complexidade do sistema tributário quanto a insegurança jurídica no país.
Espera-se que prevaleça na tramitação do PLS nº 386/2012, no mínimo, a posição de seu Relator, o Senador Humberto Costa, que entende ser “inoportuna a inclusão da locação empresarial de bens móveis na lista de serviços”. Se aprovado o mencionado Projeto em sua forma original, o resultado será, certamente, acréscimo de trabalho aos já abarrotados tribunais brasileiros.
André Luiz Fonseca Fernandes – Sócio de Alcides Jorge Costa Advogados Associados, em São Paulo. Mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Especialista em Direito Tributário pela PUC-SP.