Herança e preconceito
Se uma pessoa não possui herdeiros necessários, poderá deixar a totalidade de seu patrimônio para quem quiser. Irmãos não são herdeiros necessários.
Disputas entre herdeiros costumam render uma infinidade de processos judiciais. E se entre os herdeiros estiverem incluídos parceiros homossexuais, a desinformação, o preconceito – e, porque não dizer, a ganância – de alguns membros da família, podem transformar a partilha dos bens deixados pelo falecido em uma verdadeira batalha.
Parte do problema se origina da crença equivocada de que, como no Brasil as uniões homossexuais não são legalmente reconhecidas, isso é suficiente para excluir companheiros ou companheiras gay de qualquer direito ou benefício. A realidade, no entanto, não é bem assim.
Um exemplo desse ponto de vista foi um recente caso trazido ao escritório, no qual um aflito cidadão me pedia orientação jurídica para proteger os direitos que ele acreditava ter em relação à herança de sua irmã homossexual. Dizia ele que sua irmã não possuía pais nem filhos, o que fazia dele seu único herdeiro. A irmã, porém, havia feito um testamento no qual indicava como beneficiária sua parceira, com quem vivia há mais de dez anos. Indignado, o autor do e-mail queria saber como proceder para anular o testamento e reaver os seus “direitos”.
Fui obrigada a lhe responder que não havia absolutamente nada que ele pudesse fazer. Uma pessoa é obrigada, por lei, a reservar metade de seus bens para os chamados herdeiros necessários (filhos ou netos, pais ou avós e cônjuge), podendo dispor da outra metade como bem entender.
Se, contudo, a pessoa não possuir herdeiros necessários, poderá deixar a totalidade de seu patrimônio para quem quiser. Irmãos não são herdeiros necessários – eles só são beneficiados se o autor da herança quiser, ou se não deixar testamento. Logo, a irmã deste cliente agiu dentro da lei ao deixar todos os seus bens para sua parceira homossexual.
Cabe lembrar que o fato de que a legislação brasileira não reconhece as uniões gays não implica, de forma alguma, que isso baste para excluir companheiros homossexuais de testamentos. Uma coisa não tem nada a ver com a outra.
As únicas pessoas que não podem ser incluídas em heranças são as testemunhas do testamento e a concubina ou concubino (ou seja, os amantes de um homem ou de uma mulher casados). Exceto por essas duas situações, o autor da herança tem o direito de deixar seus bens para quem quiser – inclusive para seu parceiro gay.
Se no que diz respeito à herança os homossexuais têm a possibilidade de proteger seus direitos por meio de testamentos, a situação se complica quando o que está em jogo são as divisões de bens que ocorrem após a separação.Muitos casais gays adotaram a prática de registrar em cartório um documento no qual “reconhecem” a sua relação. O objetivo é tentar provar, no futuro, a existência de uma vida comum e, assim, poder reivindicar seus direitos em caso de separação. A validade de tal documento, no entanto, vai depender do entendimento do juiz. Boa parte dos magistrados tende a interpretar a lei ao pé da letra e se recusar a reconhecer uniões gays, com ou sem documento registrado em cartório. Alguns, porém, já emitiram decisões favoráveis quanto ao reconhecimento da união estável entre homossexuais, e se o juiz se mostrar propenso a seguir essa tendência, então o documento firmado pelos parceiros poderá ajudar.
Infelizmente, uma situação como essa mais parece depender da sorte do que da Justiça, já que muito depende do processo cair nas mãos de em juiz progressista ou conservador.
Ivone Zeger é advogada militante especialista em Direito de Família e Sucessão. www.parasaberdireito.com.br
Fonte: Diario do Comércio