É hora de aprimorar o regime fiscal brasileiro
Decantados os resíduos da discussão sobre a “alquimia fiscal” do governo é oportuno analisar a fundo o regime fiscal brasileiro, de forma a depurá-lo na essência. Por detrás do debate que ocupou os economistas no início deste ano, há dois aspectos problemáticos do regime de meta fiscal brasileiro que merecem discussão. O primeiro deles está associado ao regime em si e se refere à relação entre a política fiscal e o ciclo econômico; já o segundo trata do nível da meta fiscal de superávit e a sua relação com a sustentabilidade da dívida pública.
Por definição, o governo tem controle sobre a sua decisão de gasto, mas a sua arrecadação depende da geração de renda, ou do crescimento econômico. Dessa forma, o estabelecimento de uma meta anual implica que, no início do ano, o governo se comprometa com um resultado fiscal com base em uma expectativa de arrecadação, considerando um crescimento econômico estimado.
No decorrer do ano, o crescimento pode não se realizar conforme projetado e resultar em uma arrecadação menor do que a prevista, comprometendo o resultado fiscal. Diante disso, o governo pode: a) anunciar que não vai mais cumprir a meta e prestar contas à sociedade; b) não anunciar nada e, por meio de descontos e antecipação de dividendos, cumprir contabilmente a meta primária; ou c) tomar medidas adicionais para aumentar os impostos ou reduzir os gastos de forma a garantir a meta fiscal do período. Das três opções, as duas primeiras são ruins para a credibilidade do governo (talvez a segunda mais do que a primeira) e a última opção é a mais ajustada ao regime fiscal vigente, no entanto, é a pior dentre elas.
Uma meta de médio prazo daria mais flexibilidade para atuar para ter momentos expansionistas ou não
Nesse contexto específico, a busca pelo cumprimento da meta fiscal por meio de uma política fiscal emergencial e contracionista retira estímulos à demanda agregada de uma economia já desaquecida e reduz ainda mais o crescimento econômico. Adicione-se a isso que a saída mais comum para esse tipo de ajuste é o corte ou adiamento de projetos de investimento uma vez que grande parte das despesas públicas é vinculada e o aumento de impostos ou corte de despesas correntes nem sempre são politicamente factíveis.
Da mesma forma, o regime fiscal brasileiro se mostra inapropriado quando o crescimento econômico é maior do que o projetado pelo governo. Nesse caso, o incentivo é para que o excesso de arrecadação se materialize na expansão do gasto público. Esse gasto adicional, ao impactar na economia já aquecida, pode gerar um excesso de demanda agregada e pressões sobre o nível de preços. Ou seja, no regime de meta fiscal anual brasileiro, não somente o resultado fiscal é pro-cíclico, mas a busca pelo cumprimento da meta fiscal ao longo do ano reforça esse caráter pro-cíclico e acentua o ciclo econômico.
Quanto ao nível da meta, emerge a segunda questão. A relação dívida/PIB se reduziu, os juros reais caíram, por que então estabelecer esse patamar de meta de superávit primário se as circunstâncias mudaram? Não parece haver fundamentos econômicos para o valor de 3,1% do PIB, mas apenas conformação e reprodução de uma convenção que possuía razão de ser no passado, mas que hoje é em grande medida arbitrária. Estimativas nossas com valores razoavelmente pessimistas (taxa real de juros implícita de 9%, 35% de relação dívida líquida/PIB e crescimento de 3%) mostram que hoje para manter a dívida estável é necessário um superávit primário de 2,1%. Em um cenário mais otimista (considerando a queda da taxa de juros implícita para 7% e um crescimento econômico de 4%) tem-se que a sustentabilidade da dívida dependerá de um superávit de 1% do PIB.
Feita essa análise, propõe-se aprimorar dois pontos do regime de metas fiscais: 1) o caráter pró-cíclico do regime e 2) a meta de superávit. O segundo ponto é o mais simples de tratar: reduzir a meta de superávit primário é uma medida palatável e que deve ser seriamente discutida, notadamente para estabelecer um novo nível de meta compatível com as condições da economia brasileira. No que se refere ao primeiro ponto, há duas formas de conciliar o regime de metas fiscais com a gestão anticíclica da política fiscal. A primeira refere-se ao alongamento da periodicidade da meta de forma a abarcar o ciclo econômico.
Uma meta de médio prazo daria mais flexibilidade à política fiscal para atuar de forma a ter momentos expansionistas e outros contracionistas e, na média do período, garantir o superávit previsto. O inconveniente dessa proposta é que ela pressupõe uma conjectura sobre a natureza do ciclo econômico e sua periodicidade, que nem sempre segue um padrão pré-determinado.
A segunda proposição consiste em estabelecer um mecanismo institucional, com regras claras, que permita ao gasto público ser expansionista nos momentos de baixo crescimento e contracionista nos momentos de alto crescimento, preservando assim a continuidade de uma meta de superávit com periodicidade anual. Isso pode ser viável por meio de um fundo orçamentário com reservas de recursos públicos que, quando acionados, devem ter como finalidade específica o investimento público. Assim, haveria um aparato legal que permitiria a expansão do investimento público na baixa do ciclo econômico e obrigaria o Estado a poupar o excesso de arrecadação na alta do ciclo econômico.
Por fim, não se trata de extinguir as metas de superávit primário, tampouco preconizar sua redução sistemática e descolada do gerenciamento da dívida pública, mas sim de adequar a política fiscal para as novas condições e necessidades da economia brasileira. Em especial é oportuno corrigir os incentivos que conferem uma natureza pró-cíclica ao regime. Além disso, é sempre bom lembrar que o objetivo da meta fiscal, não é a meta em si, mas o de dar sustentabilidade à relação dívida/PIB e essa última, como pressupõe o denominador, depende também do crescimento econômico. Nesse sentido, o rigor fiscal quando restrito à busca míope de metas anuais, não é sinônimo de melhora na posição fiscal. E um regime fiscal que esbarra na sua própria inflexibilidade poderá resultar em recessões cíclicas ou em alquimias contábeis.
Pedro Rossi é professor do Instituto de Economia da Unicamp e Ítalo Martins é pesquisador do Centro de Pesquisa de Conjuntura e Política Econômica (Cecon-Unicamp)
Publicado no Valor Econômico