Nova ferramenta de gestão dará mais transparência às contas públicas, diz secretário
Brasília – O Ministério da Fazenda quer implantar, em 2009, uma nova ferramenta de gestão pública para medir os custos dos principais gastos de custeio da máquina administrativa e dos serviços prestados ao cidadão, amparado na Lei 11.638, sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em dezembro do ano passado. A lei dá flexibilidade ao setor público e às empresas privadas para adoção do padrão internacional de contabilidade, mas abre espaço para maior transparência das informações.
As empresas deixarão de seguir diversas regras de contabilidade estabelecidas pela Receita Federal. No entanto, terão que apresentar demonstração de fluxo de caixa, entre outras medidas.
As mudanças na contabilidade pública, que envolve os estados e municípios, deverá ter foco na avaliação da evolução patrimonial: ativos e passivos. A maior alteração deverá ocorrer no processo de análise de eficácia do gasto público.
O secretário executivo do Ministério da Fazenda e ex-ministro da Previdência Social, Nelson Machado, acha que é hora de estabelecer um mecanismo para medir os custos do governo, a fim de avaliar a eficácia da administração pública e dos programas e serviços prestados à sociedade, em vez de olhar apenas o comportamento das despesas de custeio do governo.
“É para melhorar a qualidade da informação e permitir que a sociedade possa acompanhar mais de perto o trabalho do governo para poder cobrar mais “efetividade” dos gestores públicos”, disse Nelson Machado à Agência Brasil.
O secretário admite, no entanto, que essa melhoria vai provocar resistências dentro do próprio governo, mas a determinação é essa mesmo: permitir que o cidadão saiba quanto custam os serviços que ele recebe. “É complicado para fazer, pois todo mundo espera que você já nasça como o Macunaíma [personagem-título de um romance do escritor Mário de Andrade, marco do modernismo no país]: grande, andando e arteiro”, disse Machado.
Leia, a seguir, a entrevista do secretário:
Agência Brasil: Secretário, como está esse processo para mudar a forma de apresentar a contabilidade no país?
Nelson Machado: Precisamos buscar a convergência contábil na área pública. O ministro [Guido Mantega, da Fazenda] já fez uma portaria definindo que a área do Tesouro tem condições de buscar a convergência para a contabilidade internacional. O Tesouro participa, inclusive com o Conselho Federal de Contabilidade, do trabalho com especialistas para começar a criar esses princípios contábeis. É um caminho longo – e não esperem resultados para amanhã. Para que a gente saia de uma informação puramente orçamentária, não digo que isso não é importante, mas que a gente busque outras informações, como patrimônio.
ABr: Isso muda a forma de registrar a contabilidade?
Machado: Quando tivermos uma contabilidade que se preocupe com isso, vamos ter que mexer nas formas de atualizar e registrar valores. Vamos caminhar para ter não só a contabilidade patrimonial, mas também a contabilidade de custos. É importantíssimo que se apurem custos do setor público, e não despesas do setor público. Custos do seu serviço. É diferente o conceito de despesa do conceito de custo. E nós nos acostumamos – isso é fruto do nosso trabalho e do “cachimbo que deixa a boca torta” – a só informar e avaliar a despesa orçamentária. E criou-se um negócio de que a despesa é ruim. E o mais absurdo é que se criou-se [a idéia de] que despesa de investimento é boa e despesa de custeio é ruim. Isso é uma esquizofrenia. Veja: investimento é bom. Então, vamos construir um hospital. Mas custeio é ruim. Então, não põe o médico, não põe o remédio, não põe nada. Isso é esquizofrênico. Quando você aumenta o investimento, na seqüência, aumenta o custo. A não ser que você faça investimento que não vá usar, não vá trabalhar.
ABr: Tem como dar um exemplo?
Machado: Fiz uma estrada, está lá o investimento. Fiz um investimento, não tem despesa. Como não? Daqui a três anos, vou ter a manutenção, tenho que trabalhar para fechar o buraco etc. Então, o investimento e o custeio estão associados. Não podemos santificar o investimento e demonizar o custeio. Se eu tivesse a contabilidade patrimonial – por exemplo, eu construo uma estrada. Quanto vale? R$ 1 bilhão. Está certo. Quatro anos depois, sem manutenção, ela vale R$ 300 milhões. Quanto eu perdi? R$ 700 milhões. Então, o patrimônio caiu. Para manter o patrimônio, tenho que manter a estrada em ótimas condições. Por isso, é importante que eu mantenha a contabilidade patrimonial para mudar o foco do que está sendo feito.
ABr: O estado poderia também medir o custo para saber se é melhor fazer ou repassar para a iniciativa privada?
Machado: É para isso também e para avaliar o administrador. O administrador tem que ser avaliado. E como se faz isso? É avaliado quando ele é eficiente. Eficaz e eficiente, que não são conceitos sinônimos. Eficiente é quando você usa muito bem o seu recurso. “Eu posso fazer aqui uma vacinação e eu sou eficiente, se tiver 1 milhão de ampolas, cada uma com dez doses e, por isso, vacinei 10 milhões de pessoas. Esse cara foi 100% eficiente, o que é difícil por causa da dispersão, em algumas [operações] sobra meio frasco e em outras, 10% do frasco. É impossível ele ser eficiente 100%, mas vamos medir”. Enfim, tem toda uma estratégia para fazer isso. Já ser eficaz é atingir a meta. Ele se propôs 1 milhão de pessoas vacinadas, ele fez 800 mil. Bom, faltam 20%. Ele não atingiu a meta. Isso pode não ser muito bom. Ou ele previu errado, fez a meta errada, ou não foi capaz de mandar a vacina para o Acre, Rondônia, Amapá, Rio Grande do Sul. Ele não foi eficaz.Agora, tem que ser efetivo, e ser efetivo é causar um impacto na realidade. Mudar a realidade, resolver o problema que você tinha, Digamos que o nosso problema aqui é mortalidade infantil, e eu resolvi fazer uma vacinação porque achava que isso ia resolver o problema de mortalidade infantil, porque as crianças morrem, porque têm isso e aquilo. Então, posso fazer um programa de vacinação. Tenho que medir a efetividade, mas isso eu não meço no dia. Por que ninguém trabalha ou discute essas questões? Porque nós estamos medindo a efetividade de quatro, cinco anos atrás. Efetividade é como mudou a realidade. Mudou a faixa de renda, mudou a mortalidade infantil. Eu vou lá na frente. E ver se mudou ou caiu por outra coisa. A vacinação dava errado e descobri que o que faltava era a alimentação, sei lá, era outra coisa. Essa é que é a questão central.
ABr: E a questão do custo, da contabilidade de custo, como se encaixa?
Machado: O custo é um elemento importante para avaliar a eficiência. As outras coisas, não. As outras coisas dependem da definição política. Então, [para] ser eficiente, é preciso saber de custos. Se você tem um administrador eficiente, ele usou bem os recursos para aquilo que precisa ser feito. Se você vai avaliar só a despesa, pode criar os conceitos mais absurdos. Por exemplo, todo ano se faz vacinação. Então, você pega lá 'despesas da saúde' e vê: o administrador Zé da Silva chegou ali no ano X e gastou R$ 5 milhões em vacinação. No ano seguinte, o cara gastou R$ 2,5 milhões. Então, pensamos que o segundo é melhor, mas temos que perguntar: O cara que comprou R$ 5 milhões, ele comprou quantas vacinas? Ele comprou 5 milhões de vacinas, sendo 3 milhões num período qualquer e 2 milhões em dezembro, que ficaram em estoque para o outro usar no ano seguinte. Então, o primeiro gastou R$ 3 milhões e o segundo gastou, na verdade, R$ 4,5 milhões.
Quando você olha o conceito de despesa, não consegue ver o conceito de custo, nem a eficiência. Aí, entramos numa esquizofrenia. Porque o cara diz: 'Tem que cortar despesa'. O cara faz [o corte de despesa] e termina não realizando o serviço. Não podemos cortar. É custo. Porque custo está associado com o que você gasta para fazer alguma coisa. Sendo assim, você elimina as distorções que vão de um ano para o outro.
ABr: E como está isso na lei?
Machado: A Lei 4.320, de 1964, já dizia que tinha que ter controle de custos, mas falava em custos industriais, porque era naquela época. A lei mandava fazer. Só que ninguém faz. Os Tribunais de Contas também mandam, mas ninguém fez.
ABr: E agora, como seria essa mudança?
Machado: O primeiro passo é criar as condições para os ajustes contábeis, transformar o conceito de despesa orçamentária para o conceito de custo, o que já está sendo feito pelo Siafi [Sistema Integrado de Administração Financeira do governo federal], que será a base das informações da nova ferramenta de gestão pública. Não vai ser o melhor custo do mundo. Alguém pode reclamar que está faltando a depreciação. Mas eu prefiro demonstrar o custo, mesmo sem a depreciação, do que não ter nada. O nosso grupo da STN [Secretaria do Tesouro Nacional] apresentou nesta semana uma abordagem para começarmos a fazer as demonstrações de custos a partir de sistemas existentes. Dado o volume enorme de dados que temos, queremos fazer o mais simples, o mais chinfrim. Nós estamos modelando o alicerce de uma contabilidade de custos.
ABr: Secretário, como isso será definido?
Machado: Já temos condições de identificar, dentro da nossa contabilidade, objetos definidos. Nas despesas orçamentárias, você tem despesas por ministério, por programa, por atividade. Então, se eu tenho essas despesas, posso transformar isso em custo. O principal custo é o de pessoal. Hoje, a despesa de pessoal vem agregada por indivíduo, mas, na hora de contabilizar, eu contabilizo de forma agregada.
ABr: E como pode ser feita a contabilização deste custo de pessoal?
Machado: Quando eu cedo um funcionário de um órgão para outro, ele continua pesando no órgão anterior, embora tenha ido para outro lado. Temos que montar um sistema que mostre quantos funcionários estão na Unidade A e quais são dessa unidade, mas estão pesando em outro lugar. Essa coisa é dificílima de fazer, mas eu acho que é o principal, o que devemos fazer. Do ponto de vista da despesa, isso não muda nada, mas, do ponto de vista do custo, muda muita coisa. Então, começa a aparecer a diferença nos conceitos de que custo é diferente de despesa. Se eu conseguir estabelecer essa distinção, aí eu tenho que pegar os ajustes contábeis para transformar despesa em custo. Se o seu salário – o que é muito comum – é de outra repartição, tudo bem. Não tem problema nenhum. Mas, na hora que eu for fazer o ajuste, tenho que tirar o seu salário que está lá na Unidade A e alocar aqui. É importante, em cada local, saber o que os funcionários fazem e quanto custam. Hoje, quando o acionista olha para o balanço da empresa , ela não olha para despesa, ele não olha para a receita, ele olha para o valor das ações. Se a gente avançar, melhora muito a compreensão da sociedade sobre os serviços que ela recebe e sobre quanto custa aquele negócio.
ABr: Funcionaria no caso de uma obra?
Machado: Eu consigo, por exemplo, saber quanto custa cada posto de saúde, escola e estrada fazendo uma apresentação gerencial técnica sobre o valor de cada metro quadrado. Um posto na periferia de São Paulo é mais caro do que no Acre. Isso é compreensível. Nós estamos trabalhando para ter as primeiras formulações ainda neste ano. Não vamos ter medo de ousar, eu disse aos técnicos.
ABr: E as reações?
Machado: A primeira vez que aparecer isso vai chover crítica, porque vai ser uma criança feia, torta, sem dente, careca, horrível. Vai faltar muita coisa, mas vai, estará ali. O uso da informação, a crítica é que vai fazer com que ele ganhe densidade e aderência para a realidade. “Ah, você colocou R$ 1 bilhão aqui, mas não é a realidade”. 'Tá' bom, tiramos isso. Agora precisamos começar. Isso nunca começou, porque sempre quiseram criar um sistema pronto, e não o que era possível . Precisamos definir conceitos claros. O que é custo, o que é despesa, o que é investimento, que são conceitos de que a academia [universo acadêmico] já dispõe. Vamos demonstrar o custo sem depreciação, sem rateio, sem nada.
ABr: Como seria sem o rateio?
Machado: Em uma fábrica de sapatos, ao fazer com que um produto agregasse ao preço final o couro, o prego, a linha da costura. No entanto, outros elementos são adicionados ao preço, como o custo da alta administração, as viagens dos executivos e a quantidade de energia do escritório, e rateia-se com o sapato. Fica aquela briga: qual o modelo que consumiu todas as coisas, para calcular o lucro. Para mim, não tem sentido. Hoje, é feito tudo de forma reversa para dizer o preço de cada produto [apontando para a caneta em sua mão]. Essa caneta, quanto custa essa caneta? Sendo assim, eu tenho que montar a caneta por um preço pelo qual se consiga vender. Com engenharia reversa. Vale para União, estados e municípios.
Enfim, a busca para a convergência internacional é conceitual, e nós vamos buscar os princípios contábeis. Hoje em dia, nós só olhamos transparência no sentido micro. Quanto é que o Zezinho gastou para fazer não sei o quê. Isso é a pulga do elefante. O que nós temos que saber é como é o elefante.
Fonte: Agência Brasil